quarta-feira, 29 de julho de 2009

Capítulo Extra 2 - Passado

Dezessete anos atrás na Irlanda, em meio aqueles campos verdes e frios havia uma casa rica, um tipo de fazenda e ali nessa casa nasceram duas crianças. Gêmeos, um menino e uma menina. Diante dos choros, das parteiras e da mãe esgotada, um homem sorria. Um sonho de um pai tinha se realizado, um filho homem, um herdeiro.
Mas é engraçado como as pessoas destroem o que elas mais amam, como os pais adoram frustrar os sonhos dos filhos “para o próprio bem” deles.
O menino foi chamado de Kasuya e a menina de Erin. A família deles, de nome Nayami era tradicionalista e rígida, o chefe dela e pai das crianças era um militar de renome no país e queria que o filho seguisse seus passos, fosse tão “bom” quanto ele. Aquela família era marcante por seus traços, pele bem clara e cabelos descoloridos que pareciam prateados, algo raro naquela região. Porem aquela família tinha seus segredos, era marcada por um tipo de frieza que levou a sua destruição.
Aos seis anos a infância daquele menino não existia mais, foi tomada pela obsessão de seu pai, O “treinamento” era muito duro e quando ele fracassava era trancafiado num calabouço embaixo da casa, punido, torturado ou tendo “lições” com o pai.
-Essa é a lei do mundo Kasuya, ou mata ou morre. – Era a frase preferida do seu pai, ele sempre a usava de pretexto para seus atos. Naquele dia o homem de longos cabelos esbranquiçados tinha levado o animal de estimação preferido da irmã do garoto, um coelho branco pequeno e dócil.

-Mas... É o amigo da Erin... – O garoto respirava pesado com o animal nas mãos, o olhava com um misto de medo e pena, tremia dos pés a cabeça.

-E daí? Você é superior a sua irmã! Está sem comer a três dias por causa dessa frescura, desse seu coração mole. – A principio ele hesitava e isso irritava o pai, o que resultava em punição – Se não matar não come, se não comer você morre e se morrer nunca mais vai ver sua irmã! – Isso seria demais pra ele, pela terceira vez seu pai o segurou pelo pulso, fazendo o coelho cair aos seus pés e ficar ali parado, na típica ingenuidade dos animais. Sentiu aquela lamina fria do punhal tocar sua pele e ser puxada com força, desenhando outro corte feio no seu braço. Era a punição por sua teimosia, pelo seu coração mole.

-Um dia você vai me agradecer.

Foi nessa noite mesmo que ele não resistiu mais, depois que o pai tinha saído, não era pela fome que estava dilacerando seu estomago, mas pelo medo de não ver aquela garota nunca mais.

-Me desculpe... – Como se o coelho fosse entender.

Com aquele mesmo punhal ele fechou os olhos e deu a primeira estacada, mas o animal não morreu, entre os ruídos agudos de dor que sua “janta” soltava, vieram mais uma, duas, três, quatro punhaladas. Seguidas por soluços e choros, sentimentos de culpa piores que os cortes que latejavam pelo corpo do menino.
Nas primeiras vezes ela vomitava, não conseguia comer um animal “cru”, mas com o tempo se criam hábitos e costumes.
Foi esse o inferno em que ele nasceu, era nesse inferno que ele ia viver por longos anos. Mas quem disse que o inferno é ruim?
Todos dias ao amanhecer ela vinha, como um anjo, a única que se importava com ele, que o amava. Erin usava cabelos longos quando pequena, sempre trazia consigo água ou comida para o irmão. E ele se sentia sujo, se odiava, não conseguia encará-la.

-Kasu...

-Erin... Me desculpa, eu...

-Ele te forçou a fazer aquelas coisas horríveis de novo né? – As vezes ela chorava junto com ele, dependendo de qual dos seus animais tinha sido morto. Mas ela nunca o repreendeu, nunca o odiou por isso, bem pelo contrario, ela corria pra ele e o abraçava. O reconfortando com palavras gentis e esperançosas – Não é culpa sua... Esse ano eu vou entrar na escola, daí quando terminar e ganhar dinheiro a gente foge pra bem longe.

O sorriso dela o acalmava, era seu santuário, dava forças para ele resistir. Até os dez anos sua vida foi assim, sempre cheio de hematomas, ossos quebrados e cortes. Foi até um milagre que o corpo daquele garoto tenha se desenvolvido normalmente. Erin era sua única paz, sua única flor num jardim de espinhos, uma flor que não poderia secar. Podia viver sua vida toda assim, portanto que ela viesse toda manhã amenizar sua dor. Mas as coisas sempre pioram...
Um dia seu pai descobriu que Erin cuidava dos ferimentos dele, bateu nela, como fazia com ele. Foi ai que Kasuya descobriu o sentimento que iria guiá-lo pra uma saída. Na mesma hora, com aquela lamina velha e ensanguentada, ele apunhalou o pai.
A surra foi pior que todas outras que tinha tomado, quando o garoto não conseguia mais se mexer, o homem que também sangrava o arrastou pelos pés até um tipo de penhasco ali perto, foi erguido pelo pescoço e ouviu da boca de seu pai a primeira coisa que fez sentido para ele:

-Sem força você não pode proteger nada! – Com um olhar impiedoso ele soltou seu herdeiro de lá de cima, murmurando suas penúltimas palavras para ele – Seja um homem de verdade e sobreviva, volte pra me matar! E saiba que até você voltar ela vai sofrer o que você sofria e em dobro!

Foi a ultima vez que Kasuya chorou, chocou-se com alguns galhos na queda e quando chegou na terra, sentiu o sangue subir-lhe para a boca e alguns ossos lhe rasgarem a carne. Ficou estirado no chão como um inseto esmagado, porem seu encontro naquela noite não foi com a morte, foi com um homem.
Tetsuo Ishida era um homem que tinha seus 46 anos, forte e de médio porte, japonês elegante, trajava sempre roupas tradicionais e finas de seu país, de cabelos grisalhos um tanto arrepiados e um cavanhaque enfeitando o queixo, sua voz soava grave, não tinha encontrado Kasuya ali por acaso.

-Você é interessante moleque.

-Ele estava certo... Eu não posso protegê-la... – Golfava sangue e parecia delirar ali no chão, mas mesmo assim insistia em falar, Tetsuo riu daquilo. A resistência física de Kasuya era monstruosa desde criança.

-Uma pessoa normal já estaria morta no seu lugar, se você vive é porque tem algo de especial. Mas não é ele que tem a capacidade pra despertar seu verdadeiro potencial. – Aquele homem abaixou-se ao seu lado e lhe estendeu a mão – Venha comigo, eu posso lhe dar sua vingança.

Com esforço ele conseguiu erguer sua mão em melhor estado e tocou a do senhor do clã Ishida, foi ali que Kasuya selou seu destino.
Até os doze anos ele esperou e recebeu um treinamento de verdade, foram passados pra ele conhecimentos e técnicas antigas e mortais que haviam sido perdidas com o tempo e resgatadas por aquele clã Ishida, do qual seu mentor era líder.
O clã por si próprio parecia um tipo de máfia japonesa como a yakuza, porem era ainda mais oculto e perigoso. Os Ishida não se metiam nos problemas do mundo, portanto que os outros não se metessem nos seus, as maiores áreas de influencia daquele clã tradicional eram na Irlanda e no próprio Japão. Tetsuo estava residindo na parte norte daquele país europeu no momento, mesmo sendo japonês. O motivo? Kasuya.
O garoto recebeu não só treino físico, mas também mental. Teve professores particulares da tal “Black Rose” à qual o clã Ishida servia como membro, ele não fora parar ali por acaso, ele tinha sido selecionado pelo próprio Tetsuo para ser seu sucessor ao clã. E para isso Kasuya se tornou uma arma, um assassino altamente treinado, mesmo sendo apenas uma criança.
Ele deixou de conhecer a dor física e seu ódio lhe dava toda a força de vontade que ele precisou pra sobreviver até ali.
Foi nessa época que Tetsuo lhe disse que estava preparado, foi bem mais cedo que ele esperava, mas aqueles malditos dois longos anos que ele esperou deviam ter algum resultado. Por dois malditos anos ele não conseguia dormir bem uma noite se quer, pensando no que Erin poderia estar sofrendo nas mãos de seu pai; Por dois malditos anos ele esperou por aquele dia, se deixando corroer pelo seu próprio ódio. A hora de recuperar seu bem mais precioso tinha chegado, o dia em que eles seriam livres...
E esse dia passou estranhamente rápido. O líder dos Ishida enviou cinco vassalos com ele, e nisso os seis invadiram aquela antiga casa de campo e mataram todos que estavam ali. Empregados, familiares, guardas... A única exceção que Kasuya abriu era Erin.
Naquela noite a família conhecida como Nayami manchou as terras verdes das redondezas de Dublin com seu sangue. Um sangue que foi extinto ali, justamente por quem deveria tê-lo honrado.
Finalmente ele se encontrou ali, fazendo seu pai ouvir o que ele tinha pra dizer. E isso foi fácil demais, Kasuya tinha o superestimado, talvez treze segundos tenham sido o tempo suficiente para aquela lamina, ainda mais fria que a casa dos Nayami, estivesse atravessada no tórax daquele homem albino um pouco acima da meia idade.
O frio avassalador, o cheiro férrico de sangue, as mãos tremulas... Não por medo ou hesitação, sim por contentação, satisfação, prazer.

-Você disse que um dia eu iria te agradecer... – Tinha sonhado com o dia em que poderia mostrar seu jeito arrogante sem temer – Você errou... Mas eu me tornei o monstro que você quis que eu fosse.

O homem não tinha forças pra retrucar, quando tentava acabava se afogando no próprio sangue, fazendo-o verter pela boca assim como vertia de seu peito penetrado pelo metal. Mas conseguiu dar suas ultimas palavras ao filho, com os olhos rancorosos e cobertos por algumas mechas dos seus longos cabelos brancos.

-Você nunca vai conseguir ficar com ela Kasuya... Nunca!

O movimento seguinte foi rápido, assim que a espada saiu do corpo dele Kasuya acertou o mesmo durante sua queda, direto na garganta, pra ter certeza que ele não ficaria milagrosamente vivo. Observar o pai decapitado no chão o saciou a tal ponto que chegou a sorrir e só parou quando ouviu a voz de um dos homens de Tetsuo:

-Jovem mestre, nós matamos a mulher também.

-Não faz mal...

A “mulher” era sua mãe, embora ela fosse muito parecida com Erin fisicamente, nunca tinha ajudado ou confortado o garoto uma única vez. Ela não ofereceu resistência alguma quando viu que seu pai estava tratando ele como um animal, assistia aquilo tudo sem erguer um dedo por ele, nem desaprovava tais atitudes. Era submissa, fraca... Kasuya a odiava por isso.
Quando a carnificina acabou eles queimaram tudo e pegaram um voo de retorno a Belfast no norte. Fazia muito tempo que ele não via Erin, agora ela tinha se tornado uma bela moça. Eles ficaram lado a lado durante o voo, mas nenhuma palavra foi dita. Era como se os olhares que eles trocavam respondessem as perguntas um do outro. Erin adormeceu nos braços do garoto naquele dia, mesmo sem ter ouvido uma palavra dela, Kasuya pode sentir sua presença gentil e acolhedora. Seu vicio, seu bem mais precioso.
Ambos tinham mudado bastante nesses anos. De trapos Kasuya passou a usar roupas negras e finas de origem oriental, estava muito mais apresentável que antes. Sempre teve uma boa aparência, mas ela costumava se ocultar por causa da sujeira de seus “treinos” diários sem direito a banhos e coisas “vaidosas”.
Já ela estava em fase de crescimento, pré-adolescencia, o corpo dela ainda continuava com traços esguios e seus tons naturais ainda eram extremamente claros, a diferença era que agora ela tinha cortado os cabelos, os deixando até os ombros. Erin adorava roupas claras também e isso a fazia realmente parecer um anjo. Sua aura calma pacifica e mística acalmavam o ódio de Kasuya. Ele amava aquilo... Seu primeiro e único amor.
Já na capital do norte da Irlanda, Erin foi para seu quarto na mansão dos Ishida. O próprio Kasuya tinha preparado aquele lugar para ela há tempos, escolheu moveis, aparelhos, cortinas, roupas, cama, tudo... Ela pareceu adorar, após tanto silencio a menina decidiu soltar sua doce voz:

-Kasu, e a mamãe?

-Ela morreu também, sinto muito. –Foi como as vezes que ele tinha matado os bichos da irmã, mas ele não se emocionou com isso, nunca mais iria.

Erin notou que o irmão tinha mudado, ele não era mais o garoto sofredor, passivo e assustado de antes. Ele nem mais falava como uma criança. Mas Kasuya estava sentindo um medo terrível naquela hora, medo de ela passar a odiá-lo pelo que fez. Tinha se tornado um matador frio, impiedoso... Não merecia compaixão, muito menos o amor dela.
Mas Erin nunca foi como as outras pessoas, ela o amava sendo o que era e suas palavras acabaram deixando-o surpreso demais:

- Tudo bem Kasu... Eu te entendo, nós somos gêmeos, eu posso sentir o que você sentia. – Ela não sorriu, mas seu olhar bondoso acertou bem fundo – Agora nós vamos ficar juntos não é?

Ele não conseguiu segurar mais, caminhou até ela e a abraçou enterrando o rosto nos ombros da garota, um tanto sem jeito por não saber ser carinhoso, mas queria tentar mostrar o quanto gostava dela. Erin sempre soube o que passava pela cabeça do irmão melhor que ninguém, ficou levemente corada e retribuiu aquele abraço com algumas lágrimas nos olhos, eles finalmente estavam livres e juntos.
Depois de alguns minutos assim ela se afastou um pouco, e encostou sua testa na do irmão deixando seus rostos bem próximos, como costumava fazer quando pequenos e achava que ele tinha febre, com o mesmo jeito meigo.

-Senti sua falta, meu irmão.

-Estou aqui agora... E nada mais vai nos separar. Nada... Eu prometo. – Ele não conseguiria mais soltá-la se voltasse a abraçar a menina – Você é pessoa mais importante pra mim, Erin...

As duas semanas seguintes foram as melhores da sua vida, foi como um sonho. Eles estavam sempre juntos, visitando vários lugares em que eles nunca puderam estar, por conta de Tetsuo. Suas lembranças da irmã sempre iriam se basear naqueles dias. Ela conseguiu fazer com que alguém como ele se sentisse feliz.
Uma flor que não podia secar...

Depois desse período Tetsuo começou a mostrar o que esperava de Kasuya, disse que Erin estava amolecendo ele as vezes, mas o que irritou foi quando ele disse que ambos, como herdeiro e líder teriam que participar de um ritual da tal Black Rose. E Erin não poderia ir junto.
Kasuya se recusou, não queria se afastar dela um dia que fosse, mas acabou cedendo quando Tetsuo disse que não ir colocaria a vida dela em risco e levá-la também.
Porem o velho concordou em levá-la depois, deixa-la num hotel pra se encontrar com ambos depois, estavam indo pra Londres. Kasuya ia se arrepender de ter cedido naquele dia por toda sua vida.

-Você é ligado demais àquela menina.

-Eu quero ser, ela é tudo que eu tenho.

Esses tipos de respostas não agradavam Tetsuo, aquela viagem foi longa, ficar longe de Erin sempre era assim. O que ele mais queria era acabar logo com aquilo e voltar pra Irlanda. Ficaram dois dias num hotel em Londres, nada de Erin ainda e o tal ritual seria executado em breve.
O local era uma antiga mansão localizada numa área discreta da cidade, apesar de antiga era muito rica e aconchegante, Kasuya não gostou do ambiente assim que colocou os olhos nele. Um dos empregados daquele casarão levou os dois pra um tipo de subsolo, Tetsuo disse que aquela era uma das casas mais antigas de Londres e pertencia a família Sullivan, os lideres da Black Rose. Já dentro da sala que era o destino, eles receberam mantos e tiveram que vesti-los, Tetsuo de preto e Kasuya de branco. Mesmo achando bizarro o garoto de cabelos prateados achou melhor não questionar, só queria acabar com aquilo logo. Com velas nas mãos eles foram conduzidos pra um tipo de circulo de pessoas encapuzadas com mantos iguais aos deles, estavam em torno de uma piscina esférica preenchida com sangue e símbolos estranhos nas bordas. O cheiro daquele sangue era estranhamente leve, chegava até a ser agradável.

-Isso é mesmo necessário? – Ele não tinha um lado espiritual bom, talvez fosse ateu.

-Sim, é o ritual de juramento de lealdade à nossa futura líder. – Tetsuo por outro parecia levar aquilo muito a sério.

Os adultos diziam palavras em uma língua estranha, Kasuya notou coisas estranhas naquelas pessoas que estavam perto dele. Havia duas meninas da sua idade mais ou menos, uma de cabelos tingidos de uma cor exagerada pro gosto do garoto e olhos cinza, inexpressivos como os de sua irmã; a outra era morena de cabelos curtos lhe escondendo as orelhas e se encurvando para as bochechas, seus olhos eram praticamente amarelos, porém o mais intrigante foi a curta visão que teve de um dos “adultos”, era uma menina e parecia ser até menor que ele. Por que ela estava vestida de negro também, ao invés de branco como todas outras crianças?
O ritual se encerrou com a aparição de outra menina, mas essa surgiu daquela piscina de sangue como se estivesse se banhando nele. Aquele liquido vermelho lhe escorria pelos longos cabelos escuros e pelo seu corpo nu, também na pré-adolescencia, o que deixou Kasuya impressionado foi o olhar dela. Os olhos tinham um verde intenso, não gostou daqueles olhos desde o começo. Havia veneno neles, do mais cruel e mortal que poderia existir. Eram tão cativantes... Pareciam prendê-lo, tirarem-lhe a ação.

-Aquela menina é a herdeira dos Sullivan, sua líder e senhora a partir de hoje.

Tetsuo se adiantou aquilo finalizado, iniciou-se uma festa nos andares de cima, num salão grande e luxuoso, serviam vinhos e doces exóticos de todos os tipos. Mais ou menos cento e cinqüenta pessoas ali, vinte delas eram crianças. Kasuya manteve-se afastado, de braços cruzados ao lado de Tetsuo. Todos da sua idade pareciam correr por ali brincando e se divertindo, mas isso não era pra ele. Kasuya não era mais criança. Seu tédio o fez procurar com os olhos pelas meninas que tinha visto lá embaixo, a de olhos verdes da banheira de sangue foi a mais fácil, ela parecia ser o centro das atenções ali, as outras crianças tinham medo dela. A de cabelos coloridos tinha sumido dali, a morena de olhos amarelos estava sentada numa das varias mesas de madeira negra, parecia ser antissocial, pois se recusava a brincar com as outras crianças. Ela chegou a olhar pra Kasuya e riu, aquilo não foi nada agradável, também não gostou do olhar com traços felinos dela. Olhar para essa menina o fazia lembrar de gatos pretos de olhos amarelos. A única com quem aquela conversava era com outra menina também nos seus doze anos, cabelos lisos encurvados nas pontas, vermelhos vivos naturais, um tom de ruivo lindo. Os olhos dela não eram tão perigosos quanto aos da menina dos Sullivan, mas eram mais intrigantes. Tinham um tom verde-água parecido com um azul bem claro. Se fosse dizer só por seus olhos, Kasuya poderia afirmar que ela já tinha vivido por séculos. Tinham um ar sério e experiente, firmes. Ela só olhou pro garoto pra saber por que a sua amiga tinha rido. Tetsuo cochichou com sua voz grave pra ele:
-Essas são as meninas da família Velmont, são ocultistas reclusas... – Antes que ele continuasse alguém o chamou, o velho deu um tapa amigável nas costas dele e saiu dali, Kasuya foi para um canto mais isolado do salão, não gostava de ser observado.

Foi lá que alguém o encontrou, outra pessoa que mudaria sua vida pra sempre. Ele notou que alguém parou na sua frente e se inclinou na sua direção, tentando enxergar seu rosto, porem quando ele ergueu os olhos do chão se assustou com o fascínio que aquela mulher lhe causou. Ela também possuía aqueles terríveis olhos verdes.

-Kasuya Ishida hm? Você é muito quietinho. Comeram sua língua?

Cabelos negros longos e soltos, franja lhe cobrindo a testa, uma aparência que parecia ser difícil crer que ela era real e um perfume que a fazia ser a opção mais provável pro lado mais sedutor do diabo.
Anita Sullivan, obviamente Tetsuo já tinha mencionado aquela mulher pra ele. Até Kasuya perdeu-se em si mesmo na primeira vez que a viu.

-Por que você não brinca com as outras crianças Kasuya? – Ele não conseguia responder e ela nem esperava que ele o fizesse – Então vamos brincar nós dois, de esconde-esconde. Eu vou sair daqui e se você adivinhar aonde vou sem me seguir, te conto um segredo. – A mulher não esperou uma resposta de novo e deu as costas, sorrindo.

Kasuya nem notou quando foi que a perdeu de vista, ele nunca tinha se sentido assim antes. Quem ou o que era essa tal Anita Sullivan?

Kasuya não esperou muito pra começar sua busca e não foi difícil acha-la. Por um lado ele era bom em rastrear pessoas e por outro ela queria ser encontrada. Estava em um dos inúmeros quartos da casa, em uma parte deserta. Anita elogiou a rapidez dele e ordenou que ele se aproximasse, o garoto obedeceu.

-O que você ia me falar? – Ele desviou o olhar, mas podia sentir o peso do dela sobre si, a mulher continuou sentada apoiando o queixo sobre as mãos brancas e macias.

-É seu papai que está fazendo segredos.

-Quais? – Ela estava falando de Tetsuo.

-Não sabe nada sobre esse ritual, fofo? Ele mentiu pra você, sua irmãzinha veio pra cá umas duas horas depois de vocês. Ela estava presente no ritual. – Seu coração deu um salto ao ouvir isso, mas quando ela terminou o efeito foi ainda maior – Nós precisamos de sangue pra executá-lo, mais ou menos de umas seis pessoas. Adivinha quem contribuiu?

Ela sorriu ao ver a expressão no rosto dele, tinha que ser mentira. Kasuya não conseguiu ficar sob aquele olhar e saiu de lá, batendo a porta.
Tetsuo não poderia ter feito isso com ele, Erin chegaria no hotel hoje, estaria lá esperando por ele... Era mentira! Tinha que ser mentira.
“Esses jovens são tão energéticos...”

Quando chegaram no hotel Kasuya agiu com pressa, revirou todos cômodos, mas sua irmã não estava lá... Sentiu-se como se todas suas cicatrizes tivessem aberto ao mesmo tempo. Tetsuo tinha dado sua palavra...

-Cadê a Erin?

-O vôo dela foi cancelado de ultima hora, então já sabe.

-Eu vou telefonar pra ela.

-Não vai conseguir, o hotel está com problemas na linha. – Ouvir isso fez o mundo do menino desabar bruscamente sobre sua cabeça, não precisou ouvir mais nada, conseguiu segurar seu desespero e ficar quieto – Eu vou dormir você devia ir também. Amanhã voltamos pra Irlanda e você vê essa menina.

Kasuya não dormiu aquela noite, tentou usar todos telefones daquele hotel cinco estrelas, estavam sem sinal, inclusive celulares... Ele começou a delirar de tanto desespero, vendo o rosto de Erin, chamando seu nome e correndo sem rumo pelos corredores. Vozes ecoavam na sua cabeça naquele momento, fizeram-no ajoelhar-se no chão, roçando os dedos com força contra a cabeça.

“Ele te traiu!”
“Erin está morta!”

Ele berrou pra quem quer que fosse se calar, viu um atendente do hotel correr até ele perguntando se estava tudo bem.

“Ele mandou bloquear os sinais só pra você não ligar. Acha mesmo que um hotel desse calibre ficaria sem telefone por acaso? Abra os olhos!”

As vozes tinham razão... Estava tudo acabado... Por que ele não podia ser feliz como as outras pessoas eram? Por que com ele? Por que Erin?
Parecia que a maldição que seu pai lhe lançou tinha se cumprido, ele quis morrer ali. Ir junto com ela... Foram esses pensamentos que o fizeram perder a cabeça. Sentiu seu ódio voltar a queimar no peito como nunca, se viu apanhando a caneta de ferro no bolso do paletó vermelho do camareiro e a enfiar por inteiro no olho direito do homem. Viu-o cair morto no chão, agonizando um pouco antes. Perdeu a consciência...

Tetsuo Ishida acordou de uma forma peculiar, com a lamina da sua espada oriental preferida lhe varando a coluna vertebral e a cama. Antes de perder os movimentos nas pernas ele conseguiu espantosamente chutar o que tinha lhe atingido, por reflexo. Quase caiu da cama quando tentou se virar pra ver, estancou o sangue com as mãos mesmo.
Era Kasuya, o menino tinha passado por dois dos seus melhores homens sozinho. Mas bastou um olhar atento para ele notar que aquele não era bem Kasuya, seus olhos tinham um novo tom avermelhado.

-Kasuya... O que...

-Por quê?

-Você enlouqueceu?!

-Não se faça de idiota... – O olhar dele era frio, sua voz convicta – A líder me contou tudo que você estava me escondendo.

-Anita... – Tetsuo deveria saber... Anita havia indicado Kasuya, ela já planejava substituir o líder dos Ishida. O garoto só estava fazendo o que aquela mulher queria, o descartando como lixo.

Sacrificar Erin foi uma exigência dela, por isso ela tinha adiado o “resgate” da irmã de Kasuya. Para ele bater com a véspera do aniversário da sua filha, Victoria. O ritual... Anita tinha o manipulado, o fez comprar sua própria destruição. Aquele demônio no corpo de mulher planejou sua morte desde quando ele adotou Kasuya. Agora era tarde demais, ele tinha caído na armadilha. Não tinha mais necessidade de mentir pro garoto

– Se alguém é culpado pela morte dela, esse alguém é Anita Sullivan.

-Sim, eu vou atrás dela assim que acabar com você.

-Erin era sua única fraqueza Kasuya, eu só concordei com isso porque quis que você se tornasse invencível, um verdadeiro líder.

-Essa não era uma escolha sua! – Ele aumentou o tom.

-Não seja covarde pra fazer isso.

-Hunf... Você está velho. Mesmo se pudesse reagir... – Ele sorriu erguendo uma Magnun que tinha pegado de um dos seguranças que matou – Você não pode se esquivar de balas. Nós vamos nos ver de novo, se houver um inferno.

O tiro acordou quase o hotel todo e fez a policia ser acionada, o corpo de Tetsuo Ishida estava irreconhecível quando encontraram.
No seu caminho pro casarão Kasuya levou mais alguns pro outro mundo, todos que cruzaram seu caminho, mesmo sem consciência disso. Sete policiais, três inocentes e quatro membros da Black Rose. Ele não soube como conseguiu matar tantas pessoas seguidamente assim, se sentia incansável, indestrutível. Mas mesmo isso não saciou sua sede de sangue. Ele só reganhou sua consciência quando chegou onde queria, estava exausto depois do seu descontrole, fedia a sangue, suava e sua cabeça latejava violentamente, mas o pior era o seu coração estraçalhado.
Tinha conseguido, estava cara a cara com sua líder e com uma pistola nas mãos.
O estranho foi que ela parecia já estar esperando ele...
A arma estava apontada, mas ele não conseguia puxar o gatilho. Ela sorria pra ele, sentada na cama onde estava, apenas com uma camisola elegante negra, seus lábios pareciam pedir pra que ele atirasse e riram quando ele não conseguiu. Tinha disparado essa mesma arma contra vários pra chegar ali, por que não conseguia mata-la também? Eram aqueles olhos, aquela voz, aquela aura sinistra que envolvia o quarto...
O que diabos aquela mulher era afinal?
Essa duvida sempre surgia, como isso era possível? Seu corpo não se movia se fosse pra prejudicá-la.
Anita se cansou da demora e apontou pra trás dele manhosamente. Kasuya estava tão pasmo que nem percebeu quando Kaori Ayako surgiu das sombras nas suas costas, e nem perceberia se tentasse... Era o fim.
O próprio Tetsuo Ishida admitia que não era páreo pra ela, nem no seu auge. Três segundos foram suficientes pra derrubá-lo e desarma-lo.
-Sua revolta acaba aqui homenzinho. – Ayako tinha se colocado em cima do torso do menino, prendendo os braços dele com seus pés e se sentado no seu peito. A mulher sabia como ser uma assassina sexy, uma bad girl e tomboy ao mesmo tempo.
A força daquela ruiva era incrível, ou talvez ele ainda fosse um pirralho de doze anos...
Ou os dois.
Foi sua vez de sentir uma lamina fria na garganta.
A ultima coisa que viu foram os olhos cinzas, o dragão tatuado abaixo de um olho da mulher de cabelos vermelhos flamejantes.
Finalmente seu sofrimento ia acabar, mas ele duvidava que fosse pro mesmo lugar que sua amada irmã tinha ido.

Anita foi piedosa, como sempre era.
A doce e divina Anita... Ela o deixou viver.
Acorrentado no porão daquela casa por uns dias, até que foi visitá-lo. Como Erin costumava fazer, Anita limpou seus ferimentos, os fios de sangue que escorriam da sua cabeça, os cortes e escoriações nos seus braços e tórax. Naquele momento Kasuya parecia uma criança normal, uma criança que tentava, mas não conseguia chorar.

-Por que não me mata? Não me deixa ir pra perto dela?

-Você acha que vai se encontrar com ela se morrer, lindinho? – Sua senhora começou a acariciar seus cabelos prateados, como uma mão com um filho pródigo, ele se calou – Ela se foi, não seja bobo e deixe isso no passado. Você é um dos meus, aja como tal.

-Por que ela tinha que morrer?

-Oh bem... –
Anita se afastou sorrindo de um jeito maldoso – Regras são regras, mas não se preocupe. Ela não sofreu... Muito.

O garoto foi tomado pela fúria novamente e gritou, avançando contra ela com um cão feroz, as correntes o impediram. Ele ficou a encará-la com os olhos vermelhos cheios de ódio e bufando, Anita riu deliciosamente, abafando os risos com os dedos. Devolveu o olhar, exibindo o seu próprio, cheio de fascínio.

-Oh! Esses olhos! Eu amo esse brilho no seu olhar, é divino, lindo! – Ela se inclinou na direção dele, segurando-lhe o rosto com as mãos, como se fosse beijá-lo ou arrancar seus olhos – Agora você percebe? Você é diferente da sua irmã. É exatamente igual aos que mataram ela e destruíram a vida de vocês.

Anita estava certa, o pior era odiá-la mais do que ele odiava a si mesmo e não conseguir fazer nada contra ela, nem conseguir erguer os olhos pra confrontar aquele olhar aterrador. Mais uma vez a distancia tornou um ataque possível, mas ele não se moveu. Mesmo cerrando os dentes e punhos ele não conseguia fazer nada

– Não posso deixar seu atentado ao clã Ishida sair impune. É como n uma loja, se quebrar tem que comprar. – Aqueles seus lábios tentadores e rubros não paravam se exibir um sorriso cheio de malicia – Os Ishida precisam de um líder como você, não de um rato mentiroso como aquele velho inútil.

O tom do sorriso de Anita mudou de novo, pra um carinhoso de uma forma estranha, maldosa. Ela assoprou os cabelos da testa do menino e os ajeitou com os dedos e o abraçou de um jeito terno, murmurou pra ele com calma, uma calma que o afetou também. Fazendo sua fúria cessar subitamente.

-Eu sou generosa, vou devolver sua irmã. Vou te mostrar caminho pra isso, mas você terá que segui-lo sozinho.

Kasuya se surpreendeu com essas palavras, seria mesmo possível ressuscitar alguém? Ele se calou em sinal de consentimento e Anita se mostrou satisfeita, lhe presenteou com um doce beijo na testa. Um beijo que tornaria sua existência ainda mais amaldiçoada.

-Bem vindo à Black Rose, criança. – Foi o que ela disse nos ouvidos de Kasuya antes de sair dali. A bondosa e gentil Anita...

Aos quinze anos ela já tinha lhe mostrado qual ritual poderia supostamente trazer sua irmã dos mortos, estava tudo pronto, ele tinha se tornado o líder dos Ishida apenas pra isso. Teria que esperar mais alguns anos segundo Anita para poder realizar o tal ritual, mas por Erin ele esperaria o tempo que fosse.

-Quer que leve sua bagagem senhor?

O seu vôo era pra Sleepy Hill, ele ia deixar o clã sob o comando dos adultos pra cuidar de seus assuntos pessoais, tirar longas férias solitárias naquela cidadezinha.
Não importava... Se fosse pra estar com Erin de novo ele pagaria qualquer preço.
Ele seria o vilão.
Sacrificaria quem quer que fosse.
Sem se dar ao luxo de hesitar.

“The worst kinds of devils aren’t those who choose to live in hell, are those who were born there and choose to live silently among us.”

2 comentários:

  1. Esse é um dos meu preferidos, deu pra entender o lado do Kasuya muito bem e pra mim pelo menos ele é o pers. masculino mais marcante da historia. E vai ser dificil tirarem o titulo dele até no volume 2.

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  2. OMG!!!!!!!!!!!!!!! O_O'

    E como eu disse e volto a dizer...
    Nossa, agora sim eu fiquei realmente triste pelo Kasuya , a vida dele não foi NADA fácil,até entendo perfeitamente os motivos por de trás de tanta crueldade e desgraças, por mais injustas e maldosas que sejam... Putz... Fiquei até mal por ele agora. Adorei esse capítulo, incrível, mesmo sendo MUITO triste e aterrador. Sou fã dele, tomou o lugar do Jin. kkkkk.

    Incrível, parabéns J, esse capítulo foi simplesmente INCRÍVEL.



    D.

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