sábado, 10 de outubro de 2009

[Vol.2] Capítulo 3 - Juramento

Uma noite fria e iluminada naquela cidade que havia se tornado colorida temporariamente, as festas de natal haviam começado e tudo estava movimentado demais nos mercados e avenidas da capital finlandesa, numa rua em particular, estreita onde poucos carros passavam. Cercada por prédios de arquitetura antiga, um garoto se encontrava caminhando sozinho em meio às pessoas que andavam por ali também. Não estava tão movimentado ali, mas ele conseguiu trombar com alguém que o xingou de algum palavrão enquanto estava distraído olhando para as luzes penduradas nos prédios atravessando a rua, acima da sua cabeça. Josh já tinha se acostumado com aquele frio terrível, a neve deixava claro que estava abaixo de zero. Ele próprio parecia um boneco de neve todo embrulhado em agasalhos de cores apagadas e discretas, não conseguiu se desculpar com a garota em quem esbarrou. Era um fracassado nesse quesito mesmo...

Há pouco tempo ele tinha largado seu antigo apartamento alugado pra ir morar numa das maiores mansões nos arredores da capital, a casa dos Velmont. Não foi difícil explicar pra sua mãe, ele disse que conseguiu um ótimo emprego trabalhando naquela mansão e que era tempo integral. Mas mudar pra lá não tinha sido um salto no seu conforto... Muito pelo contrário, parecia que ele tinha se alistado num exército de bizarrices. Acordava às seis horas da manhã pra correr e se exercitar, às oito horas tinha um café da manhã farto (a parte boa), depois das nove ao meio dia recebia treinamentos dos “seguranças” do local. Aquela mansão tinha uma academia com todo tipo de equipamento, era simplesmente incrível. Depois vinha o almoço e um breve descanso, pra voltar às atividades duas horas da tarde, tendo aulas de culturas, hábitos, rituais e história pagãs com a própria Ophelia Velmont. Fazia pouco tempo que Brigith tinha saído dali, mas ele realmente sentiu falta dela naqueles dias, principalmente por ter que encarar uma mudança tão brusca na sua vida ao lado de estranhos que nem sequer olhavam pra cara dele e tentavam ser simpáticos. Sentia-se sozinho, a única quebra nessa solidão era com seus instrutores que eram sérios demais. O de exercícios era o “personal trainer” particular de Brigith, um cara “sarado” e estranho, Josh jurava que aquele cara era gay ou metrossexual. Já o de luta era quem treinava Brigith também, o segurança chefe da família, o tal Aki. E quanto às aulas... Ophelia era a mais cruel dos três (mesmo que Aki o espancasse), muito rígida e ranzinza pra uma garotinha da idade dela. E como era esquentada... Não era a toa que Bri deu o apelido de “pimentinha” pra ela. Mas o garoto se pegava totalmente perdido naqueles olhos pálidos da sua pequena professora de história, se perdia neles tantas vezes que desconfiou que devia ter um lado pedófilo adormecido dentro de si. Era apenas um palpite, mas eram tão intrigantes e belos. Sempre que isso acontecia levava reguadas de madeira ardidas na testa ou beliscões. Ophelia não poupava forças e ele não gostava da guria, sempre respondia pra ela ou xingava ela de anã com TPM (O que geralmente gerava mais uma reguada).

Naquele dia no natal ele tinha decidido amenizar a relação conturbada que levava com a pirralha, não por querer ficar bem com ela, mas por Brigith. Ele se lembrava da expressão que a morena fez quando ele xingou a baixinha. Não queria continuar assim e correr o risco de ser odiado pela morena, então não custava dar um presente, tipo uma boneca barata só pra agradar a ruiva. Ele sabia que não podia comprar nada a altura, mas era só pra tentar se aproximar dela um pouco sem receber agressões em troca. E a situação era perfeita, uma prima sua tinha vindo pra cidade há pouco tempo. Ainda tinha uns quinze anos, mas era a mais bonitinha delas, e a que mais gostava do primo. Alias, se dar bem com ele era diferente de gostar, o que importava era que eram parentes e ele foi obrigado a usar seu dia de folga pra levar a garota pra passear. E em troca ela teria que apenas ajudá-lo a escolher um presente pra criança. Não era nada tão penoso assim.
O nome da tal prima era Matilda, uma outra morena de cabelos ainda mais curtos que Brigith, cobriam-lhe as orelhas e eram curvados pra dentro, com uma pinta um pouco abaixo do olho esquerdo (eram de um tom mais escuro que os dele). Ela sempre usava alguma coisa na cabeça, preferia boinas, mas variava bastante. (Agora, por exemplo, estava com um gorro vermelho em conjunto com casacos e agasalhos escuros, provavelmente muito frio)
Sobre a personalidade, Josh a achava muito metida, mas era divertida. Sua arrogância parecia infantil e engraçada às vezes. Enfim... Era a única parente na sua média de idade com quem ele se dava bem. O resto o considerava um esquisito e preferiam manter-se bem longe do rapaz. Bem, a própria Matilda pensava por que diabos ela ainda andava com ele às vezes. E se ela não teria alguém menos lerdo pra ser sua companhia na cidade nova. Estava ali plantada há quase meia hora esperando ele.

-Mas que droga seu inútil! Por que você se atrasa tanto assim? – Esbravejou ela.

“Porque eu me mudei pra uma mansão que pertence a uma seita pagã e estou sendo treinado por eles pra me tornar membro todo dia a partir de agora.”

Foi o que ele quis dizer, mas se contentou com um simples:

-Acordei tarde, foi mal.

Josh ergueu um pouco a mão no ar e abaixou a cabeça como um tipo de pedido de desculpas, e ela aceitou. Caminhou na frente, ele a alcançou logo, aquelas ruas eram bonitas nessa época e as lojinhas iluminadas e coloridas davam um ar mais animado. A garota não era de se abater por um mero atraso, então tratou de ir logo ao ponto:

-O que exatamente quer comprar e pra quem?

-Ahn... Pra filha da minha patroa. É uma pirralha na pré-adolescencia. Não tenho idéia do que comprar, por isso chamei você.

-Isso é estranho, mas nem vou perguntar o motivo. Deve estar dando em cima da patroa.

-Dando em cima? Larga de ser idiota, isso só... – Bem, a patroa seria Brigith. E de fato tinha algo ai, era por ela mesmo que ele estava falando isso – Eu me desentendi com a anã e só quero que ela pare de pegar no meu pé.

-Primeiro podia tratar ela com mais respeito não acha? – Matilda sorriu arrogante pra ele, como se ele fosse o “idiota” – Parar de chamar de anã ou pirralha. Algumas crianças gostam de ser tratadas como adulto, acho que um presente bom pra ela... Como ela é?

-Ruiva, baixinha, estressada, chata, ranzinza, podre de rica e tem olhos bonitos.

-Que tal uma caixinha de musica?

-Sei lá... Você escolhe, eu pago.

-Se não tiver animo ou iniciativa, nunca vai conseguir laçar a sua “patroa”, idiota.

Ela riu e correu pra dentro de uma lojinha, o garoto a seguiu com uma cara de não estar gostando muito dos conselhos dela. Mesmo que soubesse que eram em partes verdade. Já não tinha esperanças mesmo de conseguir algo com Brigith, eram apenas amigos. Porém era bom que ele se resolvesse com Ophelia antes que a outra voltasse da sua viagem, se dependesse só da ruivinha, ele sabia que iria ser uma guerra sempre.
Ele ficou com uma caixinha de musica mesmo, mandou embrulhar em algo vermelho e guardou. (A musica dela era lenta, dava sono) Decidiu entregar agora mesmo... Não tinha nada melhor pra fazer, o problema foi que sua prima querida quis ir junto pra ver o lugar onde ele trabalhava. Josh tentou de tudo pra desanimá-la, mas depois que mencionou cultistas satânicos que sacrificavam animais, a garota se interessou de verdade e o fez levá-la até a mansão dos Velmont. Era escura naturalmente, só eram visíveis as luzes vindas das janelas, ao anoitecer, do casarão. Matilda não acreditou quando ele desceu ali. Aquela casa devia ter o tamanho de um quarteirão inteiro no mínimo. Depois dos vários “Nooossa!” da garota, ele conseguiu entrar mostrando a cara no interfone e não demorou muito pra ser abordado por alguém que perguntava quem era aquela outra morena. Foi até impressionante terem chegado ao Hall da casa sem terem sido abordados antes. Vai ver confundiram Matilda com alguém. Quem notou a estranho foi aquele “Aki”.

-Quem é a garota, moleque?

-Uma prima, vim só entregar algo pra baixinha. Ela não vai ficar muito. – Obviamente o rapaz estava quase tremendo de medo dos socos daquele brutamonte.

-Lady Ophelia não permite visitas de estranhos na casa da família. – Respondeu o careca.

-Pelo que eu soube, meu primo é considerado da família. –
Quem falou foi a guria, e continuou sem dar chances pra Aki responder – E se ele é considerado da família, AMIGOS da família podem fazer visitas, estou errada? – Mais uma vez o grandalhão abriu a boca e foi interrompido – Então vê se não enche e se põe no seu lugar, funcionário de quinta.

Aki rangeu os dentes, Josh engoliu seco... Aquela demente estava se metendo onde não devia, com quem não devia. Antes que o homem de terno fizesse algo ou falasse, foi interrompido mais uma vez. Só que quem descia as escadas do Hall era a própria Ophelia, a dona da voz. Ela usava um dos seus finos vestidos negros com detalhes dourados. Caia até um pouco abaixo de seu joelho, com sapatos caros e sua travessa preta de rotina.

-Qual o motivo de tamanha algazarra?

-O novato trouxe uma “amiga” pra cá. – Aki parecia realmente irritado, só se conteve por causa da presença de Ophelia. Por que ele abaixava a cabeça pra uma pirralha? Josh ainda não entendia por que uma criança era a chefe da família.

-Eu devo merecer... – A ruiva fitou os dois visivelmente irritada – Tu sabes das regras moleque, se desrespeitá-las eu hei de punir você. Brigith concordando ou não.

-Calma ai baixinha, fui eu quem insisti pra vir ele não tem culpa. – Matilda bateu o pé, era tudo o que o garoto não queria... Se elas discutissem ia terminar mal.

-Quem tu achas que és pra entrar na casa de alguém sendo convidada por um empregado? – O tom de Ophelia foi frio.

-Pra mascote de um culto satânico até que ela é bem arisca hein primo?

Ótimo, tudo que ele precisava... A ruivinha cerrou o punhos e olhou pra Aki, e seguidamente pra Josh que ficou com medo daquele olhar. De todos os olhares raivosos que a garotinha tinha lhe lançado aquele foi o pior. Aki caminhou na direção dele.

-Merda... – Era tarde, o careca o agarrou pela gola.

-Eu sabia que era uma escolha mal pensada desde o inicio! O que infernos Brigith pensou para colocar um verme desses em nosso clã? Tu falaste a ela? – A menina aumentou a voz.

-Não... Eu só tentei assustar. – Ele se calou com um tranco que Aki deu nele.

-Tu nem devias estar aqui hoje! Mesmo em dias de folga tu vens me causar ainda mais dor de cabeça! Aki, coloque este asno pra fora daqui, e esta enxerida insolente também!

Ele não precisou ouvir duas vezes, arrastou Josh e agarrou Matilda pelo braço, levando os dois. A garota não reagiu bem e tentou se debater, escorregou e caiu no chão. A sacola estava nas mãos dela mesma e aquilo voou de encontro com o piso, a caixinha embrulhada num papel vermelho fez um barulho estalado e passou a emitir uma musica lenta, que agora parecia um zumbido agudo. Provavelmente o presente tinha quebrado, revoltada, Matilda se ergueu e berrou com Ophelia. De um jeito que ninguém ali ousaria fazer:

-Você sabe por que esse “asno” jogou o dia de folga dele no lixo? Foi pra tentar se entender com você! Pra tentar ser seu amigo! A gente veio aqui só pra te dar uma porcaria de um presente, agora que tá entregue, a gente sai daqui se é isso que você quer! – Ela se levantou e passou esbarrando em Aki, indo em direção da saída – E não precisa me levar, tenho pernas!

A líder da família Velmont ficou calada observando Aki levar Josh pra porta, o garoto coçava a cabeça com freqüência e suspirava. Por que ele tentaria se entender com ela? Por Brigith. Era a única coisa que ambos tinham em comum, foi nessa hora que Ophelia soube que ele gostava mesmo da sua filha. Caminhou em silencio até a sacola no chão e viu uma caixinha embrulhada. Desfez-se da fitinha branca e encontrou seu presente ali, quebrado em pedaços. A garotinha segurou a caixinha de musica nas suas duas mãos pequenas e ficou ouvindo aquele barulho, que antes seria uma canção, sumir no ar. Cena familiar. Era o natal cristão, dava pra se lembrar da neve...
Ela apertou um pouco os lábios e deixou a palavra escapar:

-Espere...

O careca parou na hora e virou-se pra sua pequena senhora, sabia o que ela iria ordenar. Matilda também parou na porta e ficou encarando os dois com uma sobrancelha arqueada e braços cruzados, Josh não acreditou. As palavras daquela maldita tinham causado algum efeito na cabecinha vermelha daquela anã chata. Ophelia fez um sinal e Aki soltou Josh. O garoto coçou a cabeça mais uma vez sem graça e desviou o olhar da garotinha, que tinha caminhado na direção deles com os restos da caixinha de musica nas mãos. Dessa vez os olhos dela pareciam os de uma criança, uma criança solitária, que estava sofrendo e estava cansada. Querendo dormir por um longo tempo.

-Me desculpe, eu não soube reconhecer tuas intenções.

Satisfeita, Matilda deu uma cotovelada nas costelas de Josh. Querendo que ele desfizesse aquela cara de bocó que não está nem ai e falasse algo legal. Ele mais uma vez passou a mão pelos cabelos negros, quando ficava nervoso não parava de mexer na própria cara. Desviou o olhar dos olhos de Ophelia e murmurou baixo:

-Sem problemas. Um dia a gente ia ter que se entender, então é melhor que seja de boa vontade do que ter que aturar um ao outro forçado...

-Tens razão... Se ela simpatiza contigo, acho que não me resta alternativa.

-Trégua? – Ele estendeu a mão de um jeito muito sem “técnica” ou graça, com um sorriso do mesmo patamar.

Hesitantemente a garotinha segurou a mão dele e a sentiu apertar de leve a sua, Matilda sorriu e bateu uma única palma. Já Aki ajeitou os óculos de cor escura com um sorriso também discreto enquanto soltou um “Hunf”.

-Então, agora que somos amigos, que tal me mostrar a biblioteca cheia de livros de ocultismo primo? – A morena tinha se animado, Josh apanhou mesmo assim. Mas foi de Ophelia.

A ruiva não acreditava que tinha ordenado um jantar mais caprichado justamente no natal, pra ela que era totalmente anti-cristianismo isso era a mesma coisa que ser Ozzy Osbourne no seu auge, de cabelo comprido, sinistro e de correntes pelo corpo dando uma festa country cheia de cowboys e afins em casa. Os pratos foram variados, presença de aveia e cevada garantida, Ophelia gostava disso. E kalakukko, uma iguaria finlandesa (um tipo de pão recheado com peixe) que agradava o paladar da garotinha também. Os dois não tiveram muito que reclamar, Matilda parecia comer de tudo. Já Josh preferia a comida da sua mãe.
Ainda lhe faltava o costume de sentar-se naquela mesa negra gigante, principalmente se fosse no lugar que era de Brigith, do lado da baixinha. Ela não ligava pra acentos, mesmo que estivesse habituada a se sentar na luxuosa cadeira na ponta da mesa como todo chefe de família faz. A menina comia elegantemente, mas em grandes quantidades, não dizia uma palavra durante a refeição. Os dois tentavam imitar sem jeito, a morena com mais sucesso. Josh desistiu e acabou comendo do seu próprio modo.
Ficaram em silêncio durante o jantar, a única que pareceu falar demais foi Matilda que perguntava coisas bestas pra Ophelia e comentava sobre isso com Josh. A conversa não andou muito, mesmo que fosse perceptível que a ruiva estivesse mais calma e compreensiva. E para a sorte dela, Matilda se cansou depois de comer tanto e perguntou quando eles iriam embora. Ophelia passeou com os olhos pelos dois, esperando uma resposta de Josh. E pelo olhar o garoto conseguiu perceber que ela queria que não demorassem muito.

-Acho melhor já irmos... Tá ficando onde?

-Paguei uma pensão no centro. Não tenho um lugar fixo, mas acho que devo ficar na sua casa.

-Quê? – Não é que fosse uma idéia desagradável, mas seria idéia de quem? Da sua mãe? Ophelia por sua vez sustentava um olhar infantil pros dois apenas ouvindo, enquanto bebia da sua taça segurando com ambas as mãos enquanto levava à boca. Aquilo era vinho?

-Você nem tá indo mais pra lá mesmo.

Matilda ficava ainda mais bonitinha sem aquele gorro com seus cabelos negros arrumadinhos. Não chegava a se comparar com Brigith na visão do rapaz, mas era inevitável pensar besteiras. A mente dele voava tanto nos assuntos do gênero que até já tinha imaginado coisas com a própria Ophelia. (Ele sempre se dava tapas por isso, era ridículo)

-Acho que vou pra lá hoje, é feriado.

-Receio que estarás aqui a tempo, de manhã. – Por que a ruiva se meteu? Queria que ele ficasse lá de uma vez? Estranho...

-Detesto ficar sozinha em lugares desconhecidos. – Matilda jogou certa idéia no ar.

-Se prometeres não sair do quarto, lhe ofereço estadia por essa noite. – E a ruiva captou.

-Prometido! Onde fico? – A morena sorriu satisfeita e colocou-se de pé.

-Ordenarei para que um vassalo mostre-lhe o caminho. E quanto a ti... – Olhou pra Josh, ele pareceu já saber o que ela diria – Vais limpar umas salas por alguma parte desta madrugada como punição para teu deslize.

-Tá... – Ele suspirou irritado, por que só ele tinha que pagar?

Josh já tinha almoçado na casa da mãe, achava que ela não ia fazer questão que ele aparecesse para a ceia. Afinal, o garoto se achava um penetra na família que ela fez com o padrasto. Decidiu ficar pela casa dos Velmont de uma vez, enquanto sua prima ganhava um pijama velho de Brigith e uma cama macia, ele ganhou um pano, lustra-móveis e uma sala empoeirada cheia de coisas velhas. Obviamente a limpeza não foi feita de boa vontade, ele limpou apenas onde a visão alcançava, sem arrastar nada. Nunca tinha visto tanto pó na vida, aquela sala devia estar abandonada há anos... Havia estantes com poucos livros, bonecas de pano com olhos de botão, cadeiras, objetos estranhos sobre uma escrivaninha. Tudo tão caótico que ficava difícil tentar deduzir para quê essa sala era usada antes. (Ophelia tinha escolhido uma das mais sujas especialmente pra ele)

Porém foi na hora de varrer o chão que Josh achou que ele não tinha ido parar ali por acaso, acabou puxando de baixo de uma estante um livro velho e acabado. Era de um couro vermelho, com um cadeado já quebrado pendurado inutilmente na capa. O garoto deixou a vassoura encostada na estante e apanhou o livro no chão, só de respirar perto dele fazia seu nariz se entupir todo. Ao abrir o livro ele notou que se tratava de um diário, as datas eram de um século atrás mais ou menos, por curiosidade ele deu uma lida em um trecho:

“Hoje fez chuva... Não me sinto agradável com climas assim, trazem memórias das quais não desejava recordar-me. Mais um deles se foi, morreu aos cinqüenta anos. Será que sou mesmo obrigada a ter herdeiros sabendo que estou fadada a vê-los morrer sem tomarem meu lugar no clã? Essas regras certas vezes me soam infundadas...
Entretanto, ainda tenho uma esperança escassa de que um dia eu veja um deles assumir a liderança da família para que eu finalmente possa descansar.
E como estou cansada nesses últimos anos, cansada e ferida. Cada vez que vejo um deles que tenha me apegado falecer, é semelhante à sensação de ter a alma penetrada por uma estaca envenenada. E quantos já se foram... Acho que dez ou mais.
Pergunto-me até quando eu vou ter vestígios de minha alma ou alguma humanidade restando. Já me sinto como se fosse incapaz de sentir o gosto de tudo ao meu redor, o verde do verão para mim é cinza, assim como o vermelho e as outras cores. Creio que a única cor que ainda chega a me tocar é o branco, o frio... Estou cansada.
Minha alma já está morta há séculos, também fria como essa cidade inteira.
Mas meu corpo se recusa a morrer junto com ela.
Por quanto tempo mais? O que a deusa quer de mim?
Acredito que o que resta é esperar...
Tenho que cumprir com meus deveres e guiar a família, a seleção ocorrerá em breve. Vou ter que adotar mais uma criança. E vê-la envelhecer e morrer.
Mais uma vez.”

Aquilo era confuso. Ele sentia uma tristeza cruel emanando daquelas páginas. Uma tristeza estranhamente familiar... Até um lerdo como ele perceberia que aquele diário pertencia à Ophelia Velmont. Mas não fazia sentido, as datas eram de cem anos no passado. Como possivelmente a garotinha estaria viva naquela época? Se estivesse seria uma velha que não conseguiria mais nem andar agora. Não tinha nexo... Não tinha mesmo sentido algum.
A menos que ela fosse imortal, como personagens de quadrinhos ou vampiros. Ou uma viajante do tempo. Ou talvez até um robô ou marionete de algum tipo.
Imaginação pra explicações bizarras foi o que não faltou da parte do garoto, mas no fim ele decidiu que era besteira pensar sobre aquilo e chacoalhou a cabeça com força murmurando pra si mesmo:

“Qual é... Não tem como uma menininha meiga daquelas ser uma vampira ou coisa do ramo!”

Considerou sua limpeza terminada ali e jogou o diário pra baixo do braço, saiu daquele lugar indo para o seu quarto. Mas Josh nunca teve um senso de direção bom, acabou rodando pelos corredores escuros e frios daquela mansão enorme por uns vinte minutos. E via coisas que não notava antes... Quadros de Ophelia muito antigos.
Pendurados e em molduras caras, com pinturas que pareciam encará-lo daquela parede escura e luxuosa. Ali só eram visíveis esses retratos, pois o chão também era negro.
Alguns com tinta desbotando, velhos. Ele sabia que tinta de gente rica não desbotaria por velhice daquele jeito em pouco tempo. Aquilo o impressionava a tal ponto que chegava a criar um nervosismo, justamente por estar começando a acreditar naquelas hipóteses absurdas que sua mente tinha criado. Seguiu os quadros daquele corredor em que estava.
Viu vários quadros de Ophelia ao lado de pessoas desconhecidas e por fim, um dela ao lado de Brigith. A ruiva estava imutável em todos. A única mudança sempre era a pessoa que ficava de seu lado nos quadros.
Aqueles mesmos olhos, cabelos flamejantes e aparência infantil.
Dessa vez ele havia se convencido que aquela menininha não era normal. Então o que diabos aquela garota era? Eles eram bruxos, mexiam com ocultismo... Será que ela seria um demônio, fantasma ou algo por aí?

Josh quase gritou quando sentiu uma mão firme tocar-lhe o ombro. Virou-se assustado e ficou cara a cara com Aki mais uma vez. Teve a leve impressão de que aquele monstro careca o perseguia... A voz dele ecoou pelo corredor, agressiva como sempre:

-Está indo nas direções erradas de novo Sr. Ylonen.

-Foi mal... Sempre me perco aqui.

-O problema não é mais o que você ver e descobrir aqui, o problema é você causar problemas pra Lady Ophelia. As mestras podem ser pacientes com você, mas que fique claro que se elas ficarem realmente aborrecidas por sua causa eu vou fazer questão de punir você pessoalmente. Espero que eu tenha sido suficientemente claro, Sr. Ylonen. – Josh deu um riso forçado, tentando se convencer que aquilo era brincadeira – A propósito, o quarto é pra lá.

Depois que se afastou pela direção que Aki apontou, o garoto engoliu seco. Onde ele tinha se metido por causa de Brigith Velmont dessa vez... Era loucura.
Saiu pelos corredores ainda atordoado pelo que pensava, até que decidiu ir tomar água quando viu uma luz acesa na gigantesca cozinha da mansão. Pelo menos lá o piso era xadrez e ele conseguia ver algo além dos próprios braços e quadros.
Porém se ele soubesse quem estava lá tomando chá, ele nem teria colocado o primeiro pé dentro do cômodo. Era Ophelia, sentada num canto tomando chá e comendo bolo de chocolate. Pelo visto até monstrinhos amavam chocolate, se fossem do sexo feminino.
Ela sempre ficava acordada até tarde, estranhamente, Josh se sentiu intimidado pela presença da garota de cabelos que pareciam chamas.
Os olhos azuis pálidos da menina focaram-se nele indiferentes. Ficou curiosa pra saber o que diabos ele estava fazendo ali, se iria caminhar pra ela. O garoto ficou parado sem saber o que falar, mas agora que ela tinha o visto... Era melhor fazer o que ele queria de uma vez.
Caminhou tentando agir normalmente até a geladeira e a abriu, pegando suco de soja, algo que Brigith tinha o feito gostar. A voz de Ophelia o assustou:

-Estás de fato se sentindo em casa, não?

-... Culpa de vocês. – Não acreditava que estava nervoso por causa daquilo.

-Culpa de sua curiosidade. O que estás carregando debaixo de teu braço? – Ah sim, ele tinha esquecido da porcaria do diário. Tinha complicado tudo agora.

-Não é nada... – Encheu um copo, colocou o suco na geladeira e tentou sair às pressas dali. Mas a menininha colocou-se na frente dele com as mãos na cintura.

-Deixe-me ver. É uma ordem.

-Ordem... Se quiser ver, vem pegar. – Ergueu o braço bem alto, como adultos faziam com crianças. Isso irritou tremendamente Ophelia.

-Vou ordenar apenas uma ultima vez! Dê-me isto! – Ela estendeu a mão pra Josh.

O rapaz riu, não tinha como Ophelia alcançar. Mas quando ele pensou no que ela poderia fazer, já era tarde demais. A garota não poupou forças e acertou um belo chute nas partes baixas dele. Definitivamente, ela era a mentora de Brigith.
Josh acabou derrubando tudo junto consigo no chão, o livro e o copo. Caiu de cara no suco com as mãos entre as pernas, gemendo de dor. A garotinha sabia onde chutar bem melhor do que Brigith... O copo se quebrou, mas ela nem ligou. Apanhou direto o livro antes de olhar praquele idiota no chão. Ela reconheceu aquilo... Sim, lógico que reconheceu.
Aquele era seu diário... Foi seu diário cem longos anos atrás.

Com um suspiro ela encarou o jovem, Ophelia já sabia o que ele teria visto ali. Por isso o medo e aquela reação incomum, mas para a surpresa de Josh, ela colocou o diário sobre a mesa e voltou para deixar-se na frente dele dizendo palavras sérias:

-Queres saber o que eu sou, correto?

Josh não soube responder, mesmo que a dor deixasse, ele não saberia o que dizer. Não precisava, Ophelia ia responder mesmo assim. A garotinha pegou um caco de vidro no chão (onde o copo tinha caído) e parou a mão na frente do rapaz, ele quase a pediu pra parar quando percebeu o que iria fazer. Mas ela não hesitou quando riscou a palma da mão com o vidro, cerrando os dentes. Isso mostrou que ela sentia dor, como qualquer um sentia.
Ophelia exibiu a palma da mão para ele, estava sangrando, cortada... Obviamente estava.
A parte surpreendente que o deixou ainda mais pasmo foi quando ele viu aquele corte se fechar rapidamente, deixando apenas o filete de sangue que escorreu dele.
A ruivinha limpou o sangue na roupa e murmurou num tom frio, dando as costas pra Josh e rumando em direção à saída sem ligar pro diário.

-Sente-se contentado agora? Uma aberração, um monstro. É isso que sou.

Ophelia saiu, ele ficou. Deitado ali por quase meia hora até que pôde recuperar seus pensamentos normais e amenizar a dor no seu ponto frágil. Josh se sentia culpado. Como se tivesse obrigado a garotinha a confessar o pior dos seus crimes.
E um crime do qual ela era inocente...
Isso não impediu que ele pegasse o diário de novo, depois de limpar a sujeira (e o rosto). Foi para seu quarto mancando e jogou-se na cama depois de tirar os tênis. Deitou-se de lado pra poder aproveitar a luz daquele quarto luxuoso e ler mais alguns trechos do diário. Precisava saber mais sobre ela. Queria saber tudo sobre aquela pirralha, principalmente agora que tinha descoberto que ela não era tão humana. Conhecer cada detalhe daquela “criatura” que Brigith amava de verdade. E foi até bom que a morena não estivesse lá, porque se ela soubesse do que aconteceu iria bater demais nele. E isso ainda seria a melhor parte.

O que ele descobriu naquele livro?
Ophelia não podia morrer... Sofria de uma “doença” que impedia que ela envelhecesse, chamava isso de maldição e às vezes culpava seus deuses por isso. Não descobriu a idade dela, mas já tinha mais de um século. Por mais absurdo que aquela situação fosse.
E estava cansada, muito cansada.
Ophelia queria morrer.
Josh finalmente entendeu a dor que Brigith sentia. Quando ele chamava a menina de “pirralha”, ”criança”, ”anã”... Ela devia se sentir inútil por não conseguir ajudar a ruiva, sabia que Brigith era assim. A morena devia se odiar por ter que ver sua mãe presa naquele corpo infantil por tanto tempo sem poder ajudá-la a escapar do seu tormento.
E ele ainda chamava Ophelia de anã... A desrespeitava por ser uma criança...
Que tipo de amigo era ele?
Naquela noite Josh dormiu tendo certeza de que era mesmo um rato.
Como Brigith tinha dito antes.

“Eu estou exausta... Não posso suportar mais viver deste modo.
Não posso mais suportar viver.
Perder tudo que eu fui capaz de amar como se fosse água escorrendo por entre meus dedos. Se eu pudesse fazer algo, ter alguém para acompanhar-me nesse tormento... Mas não.
Eu sou inútil, sem poder algum para alterar a ordem da natureza.
Por isso eu sou a única que vai contra tal ordem sem direito de escolha desta forma.
Temo que eu seja demasiadamente fraca para suportar o meu destino.
Já vi-me tentar encontrar a morte de varias formas, mas sempre em vão.
A líder dos Velmont não é suficientemente forte para levar uma existência eterna e sozinha. Não passa de uma garotinha frágil. Fraca...
Que chora sozinha longe dos olhos de seus subordinados.
Somente para não compartilhar com eles de sua fraqueza e impotência.
Por que alguém que vive desta forma merece viver tanto?
Seria uma punição por meus pecados?
Quando isso irá parar?
Quando eu vou poder ter minha paz?
Muitas perguntas para quais eu não soube a resposta mesmo procurando-as durante séculos intermináveis. Eu só desejo...
Eu só desejo dormir um pouco.
Não... Dormir por um longo tempo...
Para poder curar esse meu coração velho e cansado.”

No dia seguinte ele não quis acordar, não sabia como encarar Ophelia depois de tudo que aconteceu. Sentou-se na cama grande e bocejou.
Ele não era culpado pelo que dizia à garotinha, pois não sabia daquilo. O que ficava martelando em sua cabeça era que no fim das contas ele tinha feito Ophelia confessar algo que obviamente ela não gostava de comentar. E tinha sido de uma forma tão... Seca.
E depois de ler aquilo tudo, era como se ele conseguisse entender o sofrimento dela. O que fazia com que ele se sentisse um verme por ter subestimado ela tanto. Bem, ele teria que consertar isso. Por Brigith. E talvez por pena...
Estava quase levantando da cama, até jogou os cobertores pro lado. Mas ficou branco quando viu uma mão sair debaixo das cobertas e segurar-se na camisa dele. Era uma mão feminina.
A principio Josh ficou boquiaberto olhando aquilo, sem coragem pra falar, ele puxou a coberta pra cima, revelando quem estava lá. Era Matilda. Usando uma daquelas camisolas curtas de Brigith, ele quase teve uma hemorragia nasal.

Tentou pensar em algo pra falar, mas nada saiu além de palavras disformes e gaguejos nervosos. O garoto ficou ainda mais branco quando Matilda, inconscientemente, abraçou-lhe a cintura (estando ainda deitada) e colocou o rosto numa das coxas dele, esfregando-o preguiçosamente nela enquanto soltava um gemido baixo.

-Deixa eu ficar assim mais um pouco...

-O-o que cê tá fazendo? – Mesmo que fosse bizarro e constrangedor, ele não pôde controlar sua imaginação pervertida. Ficou praticamente esperando que a prima começasse a fazer coisas obscenas e até se “alegrou” um pouco com essas idéias.

-Fiquei com medo... Daí vim dormir com você...

Matilda era uma garota deliciosamente inconveniente. Ele se esquecia disso, mas ela não era de ter vergonha perto dele. Era como se fossem irmãos e ela fosse confiante de que ele não tentaria nada com ela. Nisso estava certa, Josh era incapaz de abusar dela de alguma forma, mas não queria dizer que ele não sentia nada por ela.
Ele obviamente sentia agora...

-V-você não acha que tá muito grandinha pra isso n-não?

Se ele estava desconcertado quando notou a presença dela ali e piorou quando ela se agarrou na cintura dele, o mais cruel foi o seu novo “Personal Trainer” ter aberto a porta do quarto naquela hora murmurando com a sua voz aguda:

-Hora de levantar menino! Saúde não pode esperar!

-(Eu tenho certeza que a minha saúde ta ótima.) – E como tinha... Ele ficou sem saber pra onde olhar quando o cara acabou boquiaberto pela cena que viu.

-Ah... Safadinho. A Ophelia não vai gostar disso.

-(Ele só pode ser gay...) – Josh colocou a mão na cara, se decidindo se zombava do instrutor ou se inventava uma desculpa pra aquilo. Decidiu ser sincero – Ela invadiu minha cama.

-E você “invadiu” ela também pelo visto. – Ele riu, Josh engasgou.

-Ela é minha prima. – Lançou um olhar irritado pro homem.

-E daí? Vai dizer que nunca teve seus momentos com primas antes?

-(Tá brincando que você é um desses que acha normal se relacionar assim com prima...)

Com o sorriso que recebeu dele, Josh se levantou da cama e nem ligou pra Matilda resmungando ao lado dele. Era melhor sair agora, antes que Ophelia ou Aki resolvessem aparecer também pra vislumbrar a cena. E aqueles dois não tinham o bom humor do “Personal Trainer”, partiu pros exercícios matinais.

O cara era do tipo “sarado de meia idade”, usava cabelo arrepiado num tom tingido claro (loiro), roupas coladas (camisa regata e shorts com tênis) quando o clima estava menos severo, e geralmente moletons pesados. O corpo dele era o mais trabalhado que Josh já vira. O garoto chegava até a invejar aquela barriga de “tanquinho” do instrutor.
Era difícil imaginar até quando a ruivinha iria deixar a sua prima ficar ali sem reclamar, o garoto até desejava que ela ficasse um tempo a mais. Estar sem ninguém pra conversar naquela mansão enorme era tortura. Aliás, não ter alguém normal pra conversar.
Ele ainda estava perdido em seus pensamentos, ficava o tempo todo imaginando e levantando hipóteses do que poderia acontecer quando ele se reencontrasse com Ophelia. Agora que ele tinha descoberto aquele segredo tão bizarro e irreal dela, podia até achar que a garotinha ia mandar matá-lo por isso.
Não... Ele sabia que Ophelia não faria tal coisa. Era impossível tentar explicar, mas ele simplesmente sabia. Aquela ruiva não era má pessoa. Só estava cansada de viver... Devia estar cansada demais. Algo que ele podia entender em partes, pois também era um tanto rabugento e entediado como ela. Sua ansiedade crescia cada vez mais quando pensava naquilo, nem conseguiu se concentrar na sua corrida e nos papos chatos que seu treinador tentava puxar. Pudera... Correr naquele frio cortante atolando os pés em neve desanimava qualquer um.
Essas corridas sempre se tornavam desgastantes, mesmo que raramente eles corressem fora dos quintais daquela mansão. Parecia haver uma floresta particular naquele lugar... E pracinhas no meio dessas florestas. Era muito difícil dizer se eles ainda estavam dentro da casa ou se tinham ido pra um parque no meio da cidade.

O tempo passou muito devagar até o primeiro café, serviram suco com pãezinhos e molhos chiques. Mas o garoto não comeu muito, Ophelia não tinha aparecido pra comer. Mesmo que só fossem uns dois dias que ele estivesse morando ali, tinha a ligeira impressão que era raro a garota não comparecer pra alguma refeição.
Ele havia notado que Ophelia comia bastante... O suficiente pra uma adulta grávida. Ou até duas. Difícil saber pra onde ia tudo que ela engolia. Comeu sem vontade, ainda se deixando levar pela ansiedade de reencontrar a garota. Agora conseguindo entender o porquê de ela ser a líder, e o porquê de ter aqueles olhos pálidos tão... Tristes.

Depois do lanche veio o treino de defesa pessoal, Aki veio pessoalmente bater nele. Devia estar com rancor pela noite passada, Josh não durava nem quinze segundos de pé.
Saiu de lá mancando, roxo e todo torto, encontrou-se com Matilda que estava conversando com uma empregada da casa como se fossem intimas. Aquela infeliz não distinguia, sempre estava falando pelos cotovelos com quem quer que fosse.
Ela riu quando viu seu primo naquele estado.
Já a serva de Ophelia apenas sorriu, encantadora. Parecia ser a governanta da mansão, tinha os cabelos curtos marrons avermelhados escuros, com olhos castanhos. Traços maduros e belos, ela devia ter uns trinta e poucos anos.
Naquele uniforme clássico de empregada então... A imaginação do garoto borbulhou.

-Uau! Eles querem te fazer comer capim pela raiz mesmo hein!

-Qualquer dia te convido pra uma aula experimental.

-Vim te buscar pro almoço, a Aurora falou que já ta na mesa.

Ficou em silencio, dessa vez ele sabia que iria encontrar Ophelia. Matilda o puxou pelo braço, praticamente o arrastando pra sala de refeições, a tal Aurora riu-se um pouco. Comentou com outro serviçal que a casa estava mais alegre desde a chegada do garoto ali.
Ao chegarem à sala enorme, escura e luxuosa de refeições, Matilda saudou Ophelia energeticamente. A garota apenas acenou com a cabeça, sem desviar atenção do seu prato. Josh ficou olhando pra ela o tempo todo durante o trajeto, querendo uma oportunidade de pedir desculpas. Porem seria má idéia fazer isso perto de Matilda, ela iria querer saber o motivo, coisa que ia gerar mais dor de cabeça. Mesmo porque ele não sabia mentir.
Ophelia não retribuiu o olhar uma única vez.

Josh tentou se comunicar com ela duas vezes, sem sucesso. E como ele não era dos mais persistentes, desistiu e deixou o silencio ser quebrado apenas pela voz de Matilda com seus comentários sobre a comida e a beleza do lugar. Não prestou atenção no que ela dizia, apenas concordava. Aquilo de alguma forma estava o deixando tenso... Nem xingá-lo quando derrubou um copo de suco na mesa a garotinha xingou. Era estranho demais da parte dela. Mais tarde, estranhamente ninguém havia reclamado de Matilda ter continuado na mansão, então ela aproveitou e ficou por lá mesmo se misturando com os “funcionários”.
Ophelia não apareceu na hora da sua aula com Josh.
Aquilo já estava ficando incomodo demais, a ponto de deixá-lo andando de um lado pro outro pensando se tinha magoado a garota tanto assim. Por fim, ele se viu suando, mesmo estando com tanto frio. Arregaçou as mangas daquele suéter azul escuro que estava usando e decidiu sair dali e procurar Ophelia. Se ela ia fazer algo com ele por ter descoberto seu segredo, que fizesse logo. Mas não dava mais pra suportar aquele clima.
Apesar de toda sua habitual preguiça, ele precisava tomar uma atitude.

Caminhou por aqueles corredores numa ainda constante tensão, perguntando pra todos que cruzavam seu caminho onde estava Ophelia. Umas três mulheres com uniforme de empregada... Até que pro tamanho daquele lugar, tinham muito poucas empregadas.
Bem, devia ser difícil achar empregadas de confiança pra cuidar de uma mansão pertencente a uma seita oculta sinistra. Enfim, não conseguiu achar a ruiva e acabou indo parar no mesmo lugar que esteve naquela noite do baile de formatura. Naquele templo gigante subterrâneo.
Ficou pasmo como da primeira vez, a diferença era que quem estava ali cercada por pessoas hostis agora, era Matilda.

O que ela estava fazendo ali? Josh ficou a chamando de burra milhares de vezes antes de ir se meter. Havia seis mulheres ali, que pareciam uma mistura de ciganas com fantasmas, as três cobertas com mantos azuis escuros e com punhais nas mãos, cabelos negros longos tapando quase o rosto todo. O garoto correu pra se atirar entre a morena e elas.
Com certeza eram elas que ele tinha visto nuas dançando no outro dia, não tinha tempo pra pensar, talvez elas fossem loucas o suficiente pra esfaquear sua prima. Quase caiu na escadaria de pedra, mas conseguiu se equilibrar e abrir caminho por elas, pra se colocar na frente da garota que observava assustada.

-Epa! O que ta havendo aqui?

-Ela profanou o templo. – A voz daquela que respondeu era arranhada, chegava a dar calafrios.

-E-eu só dei uma escapada de lá de cima e vim aqui. Daí vi elas cantando e perguntei sobre o que era a canção. Nada demais... Espera, isso aqui é mesmo uma seita satânica?

-Merda... Você é curiosa demais sabia? – Josh não sabia como sair daquela situação, quando ele mesmo tinha se metido naquilo, quem havia salvado sua vida da maneira clássica de “silenciar” pessoas tinha sido Brigith. Mas ela não estava lá pra salvar Matilda agora. –Ninguém vai encostar nela, ouviram?

-Josh... Por que elas tão sérias assim? Isso é zueira? – Apesar das palavras, ela estava visivelmente assustada. Não esperava que ele tentasse protegê-la.

-Se você está defendendo uma invasora, a nossa lei é clara! Isso não pode chegar à luz! – Todas elas se aproximaram, com punhais firmes nas mãos. Josh perdeu totalmente a cor.

Na medida em que a primeira se aproximou rapidamente, pronta pra desferir um golpe no garoto, ele jogou um de seus braços na frente por reflexo. Acabou levando um arranhão no antebraço esquerdo. Não podia bater em mulheres, mas esse pensamento fez uma quase acertar Matilda e ele pode sentir uma das laminas passar na frente da sua garganta quando se virou pra ver a garota. Não havia nada a dizer, suas palavras falhavam, seu coração acelerava, aquilo não era algo legal de se sentir. Não havia uma saída.

Matilda estava assustada a ponto de soltar alguns gritos quando as mulheres tentavam atacar, estava grudada nas costas do garoto. Quando os primos estavam praticamente encurralados, Josh já preparado pra tomar uma facada em cheio dessa vez, uma voz familiar adentrou e ecoou no templo.

-Qual o significado disso? – Era Ophelia, estava descendo as escadas de pedra sem pressa. (Ela sempre estava descendo escadas em horas convenientes...) Parecia estar bem irritada, Josh achou melhor se calar.

-Mais uma vez pessoas de fora invadiram o templo no meio de um ritual, Lady Ophelia! Isso é inaceitável! É um insulto! – Foi o que uma das mulheres respondeu aos berros.

-Sim, pelo menos um deles tem que morrer como lição. Isso é um ultraje, de fato um insulto aos deuses! – Outra se apressou pra garotinha.

-E por acaso aderimos a sacrifício humano no clã? Receio que não.

-Mas, senhorita...

-Não existe um “mas”, eu mesma elaborei tais regras. A piveta não é uma estranha aqui, se vós interrompestes o culto apenas por causa dela, a culpa é totalmente de vossas autorias. Porém se fizerem tanta questão de um sacrifício, perfeito, providenciarei um pedestal para cada uma que ousar me contrariar. Fui suficientemente clara?

O silencio ali foi total. O tom de voz da ruivinha chegou a arrepiar até Josh e Matilda, bem, a morena ficou com os olhos brilhando na direção de Ophelia.
As seis mulheres não falaram mais nada, abaixaram as cabeças e fizeram um pedido de desculpas para ambos e continuaram com suas canções, ajoelhadas diante de um altar.
Ophelia olhou torto para os dois e se retirou, Josh seguiu ela e Matilda imitou a ação. Difícil foi a fazer parar com as perguntas que fazia sobre o que era aquele lugar e quem eram os Velmont, quando finalmente voltaram para as partes superiores da mansão. A ruiva ainda evitava olhar pra Josh, isso fez aquela sua revolta voltar, ele ficou impaciente até que fez algo que não era do seu feitio. Gritou, quando a garotinha ignorou seus chamados discretos:

-Ei pirralha! Será que dá pra olhar pra mim um pouco?

-Ela vai mandar te matarem. – Matilda acreditava nisso verdadeiramente agora.

-O que foi? – Sim, ela tinha se virado pra ele, com uma sobrancelha erguida e com um olhar maldoso de sarcasmo ou indiferença.

-Por que você tá me evitando assim o dia todo? Desde àquela hora... Você vai começar a agir igual a uma medrosa assim só por causa daquilo? Nem pra dar as minhas aulas apareceu! Não pode ficar fugindo ou me ignorando o dia todo, agora eu moro aqui, lembra?

-E quem disse que estou fugindo de ti? Apenas tive assuntos do clã pra resolver, saí da cidade de manhã e só voltei há pouco, ainda estou ocupada pensando em certos problemas que preciso solucionar. E por acaso sou líder de uma parte considerável de uma sociedade secreta que tem alta influencia na economia finlandesa, ou seja, não vou poder ficar brincando de ser tua babá todos os dias. Porém creio que terei que providenciar uma em tempo integral pra impedir você de ser assassinado por outros membros do clã.


-Não tava aqui?! –
Sim, aquilo o derrubou. Então ele tinha se alterado assim por nada? Legal.

-De qualquer forma, acho que fui forçada a adotar uma candidata pra isso. – As palavras de Ophelia fizeram Matilda saltitar.

-Ela? Tá brincando né?

-A menina já viu demais e ao contrario de ti, não é estúpida a ponto de não entender a gravidade do que ela se meteu. E como Bri está viajando, receio que será minha única arma contra sua cabeça oca. – Soava cruel, mas era bom ao mesmo tempo. Ele se sentiu aliviado, mas Ophelia perdeu um pouco da postura rígida e murmurou em voz baixa algo que ele não esperava. – Eu não pude escolher sobre aquilo. Quando você descobriu, foi inevitável me sentir fragilizada. Mas não preciso de misericórdia ou aceitação alguma sua.

-Aah... Então ta rolando algo entre vocês!

O comentário de Matilda foi desnecessário, Ophelia corou e começou a xingar a garota sem se poupar, nunca se poupava mesmo. Josh sentiu vontade de rir, mas apenas sorriu discretamente. Tudo tinha ficado bem. Mas a insegurança veio do pensamento “O que vai acontecer com essa intrometida?” naquela noite eles dormiram lá de novo, Ophelia não apareceu pra janta. Josh deduziu que ela estivesse cansada demais pra isso, tinha visto ela caminhar de um lado pra outro da mansão junto com algumas pessoas, nem parecia mesmo uma menininha de doze anos.

Depois da janta ele perdeu Matilda, então foi dormir mais cedo torcendo pra que ela não se metesse em mais confusão. Ficou pensando em Ophelia algumas horas, não conseguia dormir, imaginando como seriam as responsabilidades dela. Preencher papéis, bancar a diplomata, resolver atritos entre membros, tomar decisões de importância vital... Ele estava errado, aquela garota não era uma “pirralha”. Era uma pessoa realmente impressionante, pelo menos a mais curiosa e fantástica de todas que ele havia conhecido. Lógico, na sua mente Brigith ainda ganhava, mas ele tinha que admitir que Ophelia fosse única naquele mundo. De forma que ninguém mais conseguiria.

As horas iam se passando e o sono não vinha, quando finalmente começou a aparecer, a porta se abriu vagarosamente. O frio na espinha foi terrível, quem era àquelas horas? Seu impulso foi virar-se de lado e fingir estar dormindo. Talvez fosse um vigia, checando o que ele estava fazendo sob algum comando de Ophelia. A porta se fechou logo, isso fez com que ele relaxasse um pouco respirasse fundo. Só que o frio na espinha foi ainda maior quando sentiu algo subir na cama do seu lado e se aproximar dele. Ophelia? Não podia ser!
O coração do garoto acelerou na hora em que sentiu aquele perfume feminino invadir suas narinas, e aquelas mãos macias envolverem sua cintura por trás. As mãos entregaram... Não era Ophelia.

Com um breve olhar ele pode ver o cabelo preto, curto e molhado de Matilda. Essa mania dela com certeza ia trazer problemas quando Brigith voltasse pra casa. A dúvida foi se deixava ficar ali ou se a acordava. Com certeza isso iria lhe render um soco.
Mas seria pior se pegassem os dois assim de novo. Ele se moveu, um pouco, mas algo o assustou. Fez seus batimentos acelerarem ainda mais e um frio aterrador atravessar seu estomago.

- Eu to acordada.

- Quer dizer que... Veio aqui com roupa indecente e... Me abraçou de propósito? É isso ?

- Idiota... Eu não gosto de dormir sozinha. Não vou tentar te estuprar.

- Hm... – No fundo ele se lamentou – Tem medo ainda mesmo?

- Sim... Tenho. Odeio ficar sozinha no escuro.

- Já passou da idade.

- Não enche...

Ainda estava se sentindo estranho. Fazia tempos que não ficava assim com alguém, a ultima vez foi a própria Brigith que dormiu com a cabeça no colo dele, certa vez que estavam num clube com piscina aquecida. Nunca conseguiu esquecer aquele biquíni que a morena estava usando. Não soube o que dizer, era uma sensação estranhamente agradável. Ele não ligou... Desejou ficar assim por quanto tempo ela quisesse. Ou mais.

- Tem certeza que vai aceitar trabalhar aqui também? Pode parecer ótimo, mas você perde a liberdade. Sua vida não vai ser mais sua... – Murmurou desanimado.

- Vira pra mim pra falar... – A voz dela soava muito sonolenta, mas ele obedeceu. Acabou frente a frente com a menina. Sentia o hálito fresco dela, de dentes recém-escovados, tocar seu rosto. Isso o fez corar um pouco, então ela continuou – Não tenho escolha tenho?

- Eu posso entrar num acordo com a ruiva. – Josh estava um tanto perdido olhando pra ela, estava com uma das camisolas de Brigith de novo, branca, semi-transparente (Por que ela usava isso naquele frio? Era irônico). Falando de olhos fechados e com as mãos ainda um pouco em cima de seu braço, como vestígio do abraço que tinha dado antes.

- Não quero... Me interessei por aqui. – Josh suspirou profundamente – Eu sou mais responsável que você. Mais inteligente que você e tal... Então se você se encaixa... Eu fico bem melhor aqui que você.

- Então ta. – Isso irritou um pouco.

-E também... Você ta aqui comigo. Então não tenho medo... –
Aquelas palavras o deixaram totalmente sem ação, o que isso significava afinal... – Somos amigos de infância. Família... Ou em resumo, eu gosto de você. – Matilda abriu brevemente os olhos pra sorrir pra ele – Agora, vira pra lá de novo. Senão você rouba um beijo meu durante o sono... Seu pervo.

Josh seria incapaz. Era bem mais fácil a sonâmbula fazer isso do que vice-versa. Ele deu um sorriso amarelo e virou-se de costas pra ela de novo. Então ele tinha uma amiga além de Brigith e nem sabia... Era uma boa descoberta.
Ia passar a considerar mais sua prima depois dessa noite. As palavras dela o reconfortaram, pareciam perfeitas demais depois de dias enfrentando a avareza e hostilidade de todos naquele clã. O tempo provavelmente faria com que os outros o tratassem como igual. E a presença de Matilda iria garantir que ele não se sentisse sozinho nisso.
Dessa vez o sono veio rápido.
“Boa noite.”

O sol veio fraco na manhã seguinte, personal trainer fazendo comentários maldosos sobre ele e Matilda, exercícios matinais, Ophelia não estava presente no café de novo, outra surra antes do almoço... Ele se sentia como se fosse aceitar aquele estilo de vida logo.
No almoço ele e Matilda dividiram mesa com a ruiva mais uma vez.
Sua prima estava completamente admirada com a menininha, ficava murmurando frases como:

“Nossa! Essa coisinha fofa ai é tão mafiosa assim?”

“Cara, eu sou fã dela! A pentelha é demais! Uma mini-deusa!”

“Nossa... Ela é a líder de uma organização tão influente assim? Pirei!”


Ophelia não comentava os “elogios”, apenas tentava sorrir de forma bem forçada pra não deixar Matilda sem graça. Isso fazia Josh rir às vezes. Mal ela sabia que a ruiva era bem mais incomum que imaginava.
A iniciação de Matilda seria nesse dia mesmo, a vida da garota ia ficar bem cheia, pois além dos deveres do clã ela ainda estudava. Josh se sentia bem, como se estivesse acima dela no clã. Mesmo que Ophelia tivesse o depreciado quando teve que aceitar Matilda como membro.
Na noite do juramento ele esteve presente (do lado de fora, claro).

“Renúncia do batismo, ritual e juramento.”

Lembrava-se claramente da voz de Brigith dizendo aquilo a ele uns dias atrás. A saudade apertou na hora, ele não havia recebido nenhum telefonema dela. A garota devia estar furiosa com ele por causa do tratamento que dava a Ophelia.
Mas a culpa era totalmente dele. Julgava-se um completo idiota depois que descobriu sobre a baixinha, talvez por pena dela. Achava que ela era forte demais pra se ter pena, mas tinha um pouco mesmo assim.

A iniciação acabou. Matilda saiu daquele templo subterrâneo (Josh também fora iniciado lá) com apenas um vestido branco, roupas intimas e descalça. Estava linda.
Como nunca ele a tinha visto antes.
Bruxas eram mesmo lindas... Como Brigith dizia desde pequena.

Ophelia estava logo ao lado da garota, com um manto longo e negro que só deixava sua face à mostra. A garotinha falou que ela devia repousar, tirar o dia só pra ela. Afinal, o sexo feminino sempre foi mais bem aceito entre aquela sociedade, tinha que ter mais mordomia.
Matilda sorriu radiante para os dois e saiu correndo pelos corredores, provavelmente para o quarto. Josh viu aquelas seis mulheres de antes dentro do templo observando de longe. Por algum motivo, ele sentia calafrios só de olhar pra elas.
Deu as costas pras “fantasmas” (como ele decidiu chamá-las por enquanto) e tratou de sair dali logo, trancando-se no quarto e lendo outras páginas do diário de Ophelia. Parecia um livro, talvez de drama.
O único assunto pendente que tinha lhe restado no fim das contas era aquele atrito com Brigith. Mas ele tinha certeza que se o clima entre ele e a baixinha fosse mantido, a morena ficaria feliz quando voltasse e tudo ficaria bem.

Parou pra pensar sobre Ophelia mais uma vez. Talvez ele devesse fazer algo pra se redimir de tudo que já tinha dito, por que não? Fechou o diário e foi procurá-la, já tinha passado da meia noite, então não seria difícil.

A cozinha, era exatamente onde ela ficava de noite. Agora estava com seu pijama azul e pantufas, comendo mais bolo e tomando chá. Ophelia parou na hora em que o viu observando da porta, com um olhar incomodo.

- O que? – Perguntou com o garfo em frente à boca.

- Ahn... Você não dorme?

- Não mais que quatro horas diárias.

- Legal... – Josh entrou, coçando a nuca, estava sem jeito pra conversar com ela, então fingiu que tinha ido lá beber algo. Pegou suco na geladeira e deixou sua curiosidade escapar – Você bebe sangue e sabe fazer algo esquisito?

- Exemplifique.

- Hmm... Super força, rapidez sobrenatural...

- Estás de zombaria? – A ruiva riu arrogante e comeu o pedaço de bolo de cenoura no seu garfo – O único fato incomum sobre mim é a regeneração de meu organismo. Como já sabes, não envelheço, a regeneração de minha carne é extremamente veloz, não preciso de tanto descanso, preciso comer muito mais outros e sou imune à maioria das doenças.

- Nunca pesquisou o motivo pela ciência?


- Ciência nunca me interessou. É o pretexto daqueles que se julgam meros montes de carne.


- Mas talvez você achasse um meio de... Ahn...


- Desenvolver meu corpo? –
Sim, era isso que ele ia falar – Os Archer já se ofereceram pra isso, mas alguns dos clãs não concordam.

- E o que eles têm com isso?

- Acham que eu sou a encarnação da Deusa. Pra alguns deles eu sou um símbolo. E por outro lado, aceito o que o destino me reservou. Mesmo que a família Sullivan insista em me “estudar”, eu não posso ser obrigada a isso. Então eu vou carregar esse fardo... – Ela olhou pro seu pratinho ainda cheio de bolo e suspirou longamente – Se um dia a Deusa permitir que eu descanse ou quiser que eu mude, então eu hei de descansar ou mudar... – Josh riu. E a garota ergueu os olhos pra ele, irritada – Qual a graça?

- É impressionante. – Continuava a rir – Eu não acharia imortalidade um fardo. Seria chato sim, muito chato e entediante. Mas to achando que todo imortal acaba levando isso pro lado da maldição. Se é que tem outro imortal no mundo.

- Se existir, tenho de conhecê-lo. Sentir-me-ia menos solitária.


- Então até você pensa em amor.


- No meu caso é uma idiotice. A menos que eu me envolva com moleques de treze anos até estes chegarem aos quinze.


- Deve ser desagradável. –
Continuou a rir, lembrando de como eram os meninos dessa idade. – Mas você nunca... Sabe...

- O máximo que já tive ligado à romance foi um beijo. E infantil.


- Ah ta... E o que houve com seu namoradinho? –
Pergunta errada.

- Ele cresceu.

- Foi mal. Mas tipo... Meninas de treze anos já podem ter vidas românticas intensas.

- Só quando elas não possuem nada na cabeça. Ser uma velha com séculos de existência faz de ti tornar-se mais exigente quanto a parceiros.

- Imagino.

- Não tenho que falar sobre isso contigo.

- Bem... – Josh riu sem graça dessa vez, aquele assunto tinha sido mesmo bizarro. Levantou-se e dirigiu-se a ela, colocando-se hesitantemente de joelhos diante da menina. Ophelia ficou sem saber o que falar – Eu vim aqui por um motivo sabe...

- O que tu estás... – Era difícil dizer qual dos dois estava mais sem jeito.

- Hm... É que... Quero pedir desculpas. – Coçava a cabeça algumas vezes – Pelas merdas que falei de você antes... E dizer que reconheço você como... Sabe... Minha líder.

A garotinha largou o garfo no mesmo instante. Parecia uma criança tímida que acabava de ganhar um excelente presente de natal. Estava corada, pasma, sem nem conseguir tentar falar, mas de lábios entreabertos mostrando um pouco de seus dentes. Josh por sua vez também corou por notar aquela expressão no rosto dela, não achava que isso valia tanto assim.

- Ahn... Preciso beijar sua mão ou coisa do tipo?

Forçou um riso, mas isso não cortou aquele clima. A garota apenas estendeu a mão para ele, fechando seus lábios. No inicio ele hesitou, não achou que fosse sério. Mas depois acabou por segurar a mão delicada da garotinha, dando um beijo sem jeito sobre as costas dela.
Então Ophelia recolheu sua mão e acenou positivamente pra ele com a cabeça. Josh se ergueu do chão, sem ter o que falar. Totalmente constrangido com a cena. Até deixou a mão na nuca dessa vez.

- Preciso desculpar-me também por tratá-lo tão mal.

- Sem problema.

- Pode mesmo perdoar-me?

O garoto riu e se aproximou, apertando a cabeça da garotinha contra o peito e bagunçando o cabelo dela num tipo de carinho.
Agora sim o clima tinha sido cortado pela raiz.

- O que diabos foi isso? – Disse Ophelia com uma veia saltando na têmpora.

- Foi mal de novo... Me empolguei. –
Ele a soltou rapidamente e se afastou.

- Se achas que só por causa desse momento melodramático vais conseguir que eu pegue leve contigo, estás cometendo um equivoco! –
De olhos fechados e irritada, ela ia arrumando de novo seus cabelos vermelhos como fogo. – A família Velmont não aceita qualquer idiota. Então é bom que tu sejas capaz de provar seu valor algum dia. Caso contrário eu abrirei uma rara exceção sobre sacrifício humano aqui. Como minhas servas desejam. – Sorriu maldosamente.

- Tudo bem patroa... Vou fazer você calar essa sua boquinha pequena aí.

Satisfeito, Josh saiu da cozinha, esquecendo-se do seu suco por lá. E Ophelia o acompanhou com os olhos. Os dias iam ser longos naquela mansão, mas agora sim ele podia sentir o significado da palavra “família” que era usada pelos Velmont.
Ia ficar tudo bem. Ele notou o sorriso sereno que havia brotado nos lábios da sua pequena líder. E bem...
Aquela garotinha merecia mesmo sorrir.
Daquela mesma forma serena, simples e infantil.

“Wake me up inside… Save me from the nothing I’ve become.”

By Jr.

Um comentário:

  1. acompanhei a primeira história, do inicio ao fim, e digo-lhe que foi muito boa.. aliás, mais do que isso e ainda não li a segunda história, mas quero ler e-e'
    isso se eu tivesse net...
    e não custa nada comentar, e outra coisa, leitura faz bem, melhor do que ficar vendo sites impróprios e ficar melando a tela de seu monitor... =)
    Leitura é cultura! Seja ela qual for ;)

    by: Melíot Ayashe

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