segunda-feira, 27 de julho de 2009

Capítulo XIII - Sorte

Ela estava sonhando de novo, estava sozinha encolhida num canto, nua no escuro. Ainda se sentia sozinha de alguma forma, incompleta, como se tivesse perdido uma parte de si mesma.
Yuna estava de costas pra ela, seus cabelos castanhos claros balançavam com um vento que vinha de lugar nenhum.
Nem sequer falava com ela, não significava nada em sua vida. Por que agora ela assombrava tanto seus sonhos?

-Algumas coisas não se explicam Elisha. – Murmurou Yuna com uma voz fria.

-Você quer tanto assim que eu descubra o que houve com você?

-Não é por mim. Vocês duas também estão envolvidas.

-Me diz quem te matou então! –
Elisha se levantou e caminhou na direção dela – Me conta tudo de uma vez!

Yuna se virou pra ela, seu rosto estava pálido e havia sangue escorrendo da sua boca. Subitamente seus olhos também começaram a verter sangue, mas Elisha só se afastou quando viu aqueles olhos avermelhados se erguerem por detrás de Yuna, que agora tinha sangue vertendo por todos orifícios da face.

-Você perdeu Elisha Sayonomi.

Aquele homem da casa de Erin também estava nos seus sonhos agora?!
Um calafrio lhe percorreu a espinha e ela ouviu de novo.

-Elisha Sayonomi!

Seus olhos se abriram devagar. Estava no meio da aula de gramática, os colegas riam dela, mas estava sonolenta demais pra levar isso em conta.
Ela não entendeu as palavras da professora, mas deviam ser criticas. A seguir ela mencionou um trabalho em grupo e o nome dos membros desse grupo de Elisha: “Kaworu Yokoyama, nº 15; Ted Goodman, nº 24 e Leon Hagen, nº 17”.
“Nerds?! Que ótimo.”
Foi a primeira reação dela diante daqueles garotos, Kaworu era o otaku de cabelo estilo “ouriço”, de cor tingida roxa no momento, animado e idiota; Ted era o cdf baixinho de óculos forte, reprimido e metido, as meninas da sala tinham nojo dele por algum motivo que Elisha nunca quis descobrir; Leon era alto de cabelos negros longos até os ombros, mauricinho mão-aberta, já era suficiente pra gostarem dele.
Elisha viu Megumi rir dela de relance. Era tão humilhante assim ficar juntos dos nerds? Ela ia adorar aquilo. No ponto de vista sarcástico de Irene, claro.

O intervalo chegou e ela saiu da sala, o que era raro, foi para o terraço da escola. Ficou em duvida por alguns minutos, queria ligar pra Victoria, mas lhe faltava coragem.
Ficou encarando o celular mais um pouco, até que decidiu ligar.
A conversa foi rápida, ela contou sobre o trabalho pra Vic, queria conversar sobre algo que não fosse Yuna ou a morte dela. Porém Vic não falava de outra coisa, disse que um dos nerds era filho de policial, segundo Yuna, pra tentar descobrir algo e que tinha que desligar.
Elisha estava se irritando com aquilo. Parecia que Victoria estava a evitando, que a achava chata ou algo do tipo.
“Com certeza Yuna é mais importante que eu pra ela.”

-Bancando a detetive, Elisha Sayonomi?

Aquela voz fez seu coração disparar, era a mesma do sonho, a mesma da casa de Erin. Quando ela se virou, o frio na espinha piorou ainda mais.

-Talvez seja arriscado se meter em assuntos que não são seus. Você nem gostava da tal Yuna.

Era Kasuya Ishida. Sua intuição acertou de novo.
Ela era o vulto que torturou sua “irmã”, Erin. Elisha não soube o que dizer ou fazer. Será que ele fora lá pra garantir que Elisha não fosse contar o que viu pra ninguém?
O que ele queria?
A encarava fixamente com seus olhos vazios. Seus cabelos lisos de cor albina se moviam com o vento, que estava um tanto forte.
Elisha o encarou de volta, respondendo esforçadamente pra não gaguejar:

-Talvez seja um assunto meu. E por outro lado, não tenho nada a perder. Mas não nego que foi engraçado justo você vir me dizer isso.

-Considere um aviso. Muitos dos nossos colegas morreram esse ano, seria um desperdício perder alguém tão incomum como você também por mera curiosidade.

-Eu sei me cuidar. E isso foi uma tentativa de intimidação?

-Talvez... E talvez você ainda tenha muito a perder, Elisha Sayonomi. Só não percebeu ainda.

A conversa tendia a se tornar mais agressiva, mas uma outra pessoa apareceu por lá e acabou com ela. Era Jin.

-Elisha e Kasuya juntos? Essa conversa de vocês deve estar bem bizarra.

Era mesmo engraçado ver as duas pessoas mais caladas da sala conversando, mas Jin manteve seu tom calmo e parou do lado de Elisha. Kasuya pareceu não gostar da intromissão, disse que estava de saída e olhou para os dois mais uma vez antes de ir.
Jin e Elisha o seguiram com os olhos, e o rapaz só abriu a boca depois que Kasuya tinha sumido de vista.

-Ele te fez algo?

-Não, só veio dar um aviso. – Elisha estranhou aquilo.

-O Ishida é estranho, não consigo confiar nele.

-Por que você tá se preocupando comigo?

-Vic me pediu pra ficar de olho. – Ele mudou de assunto rápido – Falando nela, vocês duas estão... Sabe...

-Não.

-Ah tá. Eu não tenho nada contra, é que...

-Mas nós não estamos.

O sinal bateu e impediu que o assunto prosseguisse. Elisha achou aquilo engraçado e disfarçou o sorriso. Estaria ele interessado nela? O melhor “partido” da sala interessado em uma guria anti-social que nem ela? Parecia coisa de filme. Clichê.
No fim da aula Leon a procurou e disse que eles iam fazer o trabalho depois da aula na casa do Kaworu, passou o endereço num papel. A letra era horrível.
E ela não iria direto pra lá também, no caminho de casa ela ouviu outra voz familiar a chamar, virou-se pra ver. Era a professora.
Perguntou se estava indo pra casa, Elisha afirmou com a cabeça, então ela disse que ia acompanhá-la. Elisha achou que estava encrencada, a mulher puxou assunto rápido:

-Esta tudo bem na sua casa?

-Sim, por quê?

-Você parece cansada demais nas aulas, está cochilando mais do que de costume. E quando está acordada fica pensativa demais. – A professora soltou os cabelos castanhos.

-Tenho dormido mal. – Mentiu Elisha.

Ela nunca tinha reparado, mas a professora era bonita de fato. Tinha olhos azuis claros lindos por detrás daqueles óculos e um corpo de dar inveja, principalmente no busto. Parecia não existirem mulheres feias na sua sala mesmo, não era algo pra se queixar.

-Mas você parece mais sociável ultimamente. – Sorriu ela.

-Pois é.

-Você é inteligente e tem uma personalidade ótima, Elisha. Só precisa sair da casca e se dedicar mais.

-Eu me dedico ao que me interessa.

-Seu futuro não te interessa?

-Só se for algo que melhore ele. Isso não inclui escola.

-Ok, Sayonomi-chan. – Ela riu, coisa rara de se ver nas aulas, o riso lembrava alguém. Mas quem? – E você não esta com medo?

-De quê?

-Yuna, Taichi, Yuriko, Joe... Quatro colegas seus morreram em intervalos de tempo muito curtos, isso me assusta um pouco. Eram tão jovens, e pensar que pode ser caso de homicídio...

-Eu não tenho medo da morte. Ela não pode ser pior que esse inferno que a gente vive.

-Sua mente é muito mórbida Elisha. Eu temo por vocês. – Ela pareceu ter mesmo medo de algum outro aluno morrer. Elisha não conseguiu imaginar o motivo, era como se tivesse algo mais. – Mas no seu caso, vou poder vigiar. Agora somos vizinhas! Mudei pra frente da sua casa há quatro dias e você nem notou. – Ela riu de novo e se despediu de Elisha, já tinham chegado.

-Até, professora.

-Pára de me chamar assim fora de sala! Só Emily basta.

Ah sim... Emily Locke. Era o nome dela.
Aquela mulher parecia mais jovem, animada e divertida fora das salas de aula.
Ter a professora morando por perto não era nada legal, entretanto.
Irene disse que ela estava com sorte hoje.
E Elisha só queria ver se essa sorte continuasse a agir.
Tomou um banho rápido e saiu de toalha mesmo, seu pai não estava em casa mesmo.
E depois de tê-la visto o saindo nua de lá certa vez, quando Vic tinha tentado agarra-la no banho, seria o de menos se ele a visse agora.
Se deparou com aquele livro que Vic tinha lhe dado em cima da mesinha do computador. Ela até tinha se esquecido daquilo, resolveu dar uma olhada nas paginas, era um tipo de agenda bem antiga, cheia de nomes em latim e hebraico do começo ao fim. Por que Vic tinha lhe dado aquilo?
Não tinha tempo pra pesquisar agora, embora ela sentisse uma energia estranha emanando dele. Podia senti-lo perto de si.
Trocou de roupa e foi pra casa do nerd, vestiu algo discreto, camiseta e saia pretas.
No caminho ela pensou em Kasuya, se ele ia tentar algo contra ela. Mas ele não sabia onde era sua casa, não sabia como acha-la a menos que a seguisse. Só a professora e Jin poderiam dar tal informação, mas ela sabia que eles não o fariam.
Demorou um pouco pra achar a casa, já tinha escurecido há um tempo. Quando chegou foi tratada como uma convidada de honra pelos três garotos, eles eram tão desesperados por mulher assim?
Recusou tudo que ofereceram e ficou observando a discussão deles pra achar um tema pro trabalho, todos sobre videogames, animes e afins. Acabou que pediram a opinião dela, Elisha respondeu seca:

-Morte na adolescência.

Os três arregalaram os olhos obviamente espantados a encarando. Elisha os assustava mesmo, isso era engraçado.

-Quatro alunos morreram recentemente na nossa sala, é um bom tema no momento. – Fazia sentido-Vai ver vocês descobrem que é assassinato em serie.

-Não é assassinato, eu sei. Meu pai é policial. – Disse Ted acanhado, tentando bancar o esperto. – Acho que com a Yuna foi suicídio.

-Então você e seu pai pensam pequeno. – Aquele comentário a irritou um pouco, foi obviamente rude e encarou o garoto, que encolheu e calou-se. Era outro covarde. Elisha notou que aquilo e não ligou, não gostava deles mesmo.

-Falando nela, eu vou ter que ir na casa da mãe dela daqui a pouco. A mãe da Yuna e minha mãe são amigas e tal, mamãe é decoradora dela daí vai lá ver umas coisas e me obrigou a ir junto.- Foi Leon que os interrompeu com a voz enrolada, causa da presença de Elisha talvez. Ele estava olhando discretamente pra saia dela de vez em quando.

Ela parou pra pensar imediatamente, esquecendo-se de todo resto.
“É sua chance guria.”
Irene tinha razão. Elisha esperou Leon estar desligado do trabalho e o puxou pela manga, falando baixo pra só ele ouvir:

-Ei, posso ir com você? Pra casa da Yuna?

-Hã??? Por quê??? – ele corou e ficou extremamente sem graça.

-Eu quero desejar meus pêsames pros pais dela, mas não conta pra ninguém ta?

-T-tudo bem, S-sayonomi.

Não foi tão difícil. Ela nem precisou jogar charme algum, como Vic fazia.

-O que vocês estão cochichando ai?

-Ah, a Sayonomi me deu uma idéia, que tal videogames de anime violentos afetando a vida dos jovens?- Improvisou Leon.

Ela concordou e eles fizeram a droga do trabalho.

Depois a mãe de Leon veio o buscar e ele custou pra dizer que Elisha iria junto, parecia ter medo da mãe, que era uma senhora de 45 anos com um sotaque engraçado. Mas o orgulho masculino do garoto fez ele falar de uma vez.

-Ela vai também? Ela é sua namorada Leon? Que bom, achei que você era gay.

Elisha não soube se aquilo foi uma piada, mas quase riu. Leon negou, sem graça, dizendo que era uma amiga de escola, e a resposta foi mais hilária ainda:

-Amiga mulher?! Então você é gay Leon!?

A morena coçou a cabeça desviando o olhar e Leon quis matar a mãe por fazê-lo passar por isso na frente de Elisha. A velha devia ser tradicionalista no mínimo. O pobre garoto ficou quieto pelo resto do dia.
Eles pegaram a estrada, pelo visto Yuna não morava na cidade.
Elisha decidiu mandar uma mensagem por celular pra Victoria a avisando que estava indo visitar a casa de Yuna. Mesmo se sentindo desimportante quando era Vic o assunto, não sabia por que ficava dando satisfações de tudo que fazia pra ela.
Estava se sentindo frágil e sem a atitude que tinha antes das aulas voltarem. Acima disso, sentia uma falta terrível daquela louca.

Depois de quinze minutos eles estavam chegando numa casa de campo grande, a fazenda também parecia algo de primeira classe. Estava chovendo forte, o que distorcia a atmosfera um pouco, aquele lugar parecia ser triste e desanimado apesar do luxo.
Saíram do carro correndo pra não se molharem muito, a casa era branca e de madeira, lembrava aquelas clássicas casas de fazenda americanas. A mãe de Leon tocou um tipo de campainha e chamou pelo nome “Luise”, foram atendidos rápido.
Era uma mulher alta, loira, os cabelos eram divididos pra esquerda e caiam serpenteando pelos ombros dela, seus olhos eram azuis, demonstravam um ar passivo e bondoso como os de Yuna, aquele sorriso deixava obvio com quem a mesma aprendera o seu. Até o vestido branco que ela usava lembrava Yuna, pra uma filha adotiva, ninguém nunca ia desconfiar que elas não tinham ligação de sangue, eram parecidas demais.
Aquela era a família de Vic então. Mas por algum motivo, Elisha achou que podia confiar naquela mulher, mas decidiu ficar atenta.
Luise os fez sentar em poltronas confortáveis na sala de estar e serviu um chá delicioso de hortelã, Elisha não bebeu antes de dar uma olhada na xícara e de Leon dar uma golada demorada no seu e não cair duro depois.
O primeiro assunto foi ela, Luise perguntou se era namorada de Leon e a mãe dele respondeu negativamente, disse que era a “Elisha Sayonomi” da sala dele, uma amiga.
Elisha notou que o sorriso se apagou durante alguns segundos depois de ouvir seu nome, aquilo não poderia ser bom.
Um raio estrondoso caiu ali perto, a casa inteira se apagou. Aquilo só fez a paranóia da garota aumentar e aumentou ainda mais quando ela usou seu celular pra clarear um pouco, Luise tinha voltado a sorrir.
Parecia que ela sabia que ia acontecer, parecia que ela queria que acontecesse.

-Acho que vocês deveriam passar a noite aqui, a tempestade não vai parar.

-Não posso, nem avisei meu pai. – Ela não conseguiu ficar quieta, não queria ficar pra ver o que Luise ia fazer.

-Não se preocupe com isso, eu mesma aviso ele depois.

-Mas eu não tenho roupas.

-Eu te empresto algumas.

Parecia que ela não tinha escolha, suas desculpas pra não ficar acabaram e Leon com sua mãe não reclamaram,deviam estar com medo de voltar naquela chuva. O que Luise estava planejando afinal?

O assunto não durou muito, dormir era o melhor a se fazer naquele escuro, as velas não iluminavam tanto.
Luise conduziu Leon e a mãe pra um dos quartos, o garoto não gostou da idéia de dormir com a mãe e ela tê-lo obrigado a isso na frente de Elisha. Os poucos minutos que a morena ficou sozinha na sala pareceram muito longos, ela via vultos em todos os cantos da casa. Quis que aquele seu canivete estivesse por perto na hora. Sua paranóia só aumentava e o susto veio quando Luise apareceu perto dela sem que Elisha percebesse de onde ela veio, aquele sorriso já estava parecendo algo macabro.

-Eu tenho um quarto especial pra você, Sayonomi-san. – Disse a guiando pro segundo andar da casa.

-Que tipo de quarto?

-É surpresa. Minha filha falava de você sabia?

A garota ficou mais atenta e se convenceu que Yuna tinha mesmo se apaixonado por ela, até sua mãe sabia disso.
A caminhada não foi longa, chegaram numa porta simples com uma placa com um nome inscrito. Elisha nem precisou ler, Luise abriu a porta e confirmou que era o quarto de Yuna, quando ambas já estavam lá dentro.
Elisha caminhou pelo quarto interessada, usando o celular pra vê-lo melhor, era grande, bem maior que o seu; cores leves e claras, uma suíte, cama de casal aparentemente confortável, bonecas de porcelana, um computador bem melhor que o seu também, uma televisão de umas vinte e nove polegadas e fotos da antiga dona do quarto com os pais, amigas e uma em particular com Vic. Estava diferente naquela foto, cabelos longos, seu rosto sem expressão, roupas estranhas no estilo Gothic Lolita.
Sua analise parou imediatamente, ao ouvir a porta se trancando nas suas costas. Luise guardou as chaves no bolso do vestido e virou-se pra ela calmamente.

-Eu sei por que você veio aqui. – Disse ela fitando Elisha, que estava preparada pra pegar o primeiro objeto que tocasse pra se defender caso Luise fizesse movimentos suspeitos. – E eu vou responder suas perguntas. Mas vá se trocar primeiro.

Ela mantinha o sorriso, mas era mais esperta do que Elisha pensou, não esperava essa atitude. A garota concordou e foi se trocar.
O banheiro estava escuro, iluminado apenas pelos raios, deixou a camisola que Luise tinha lhe emprestado de lado pra poder ver melhor.
Olhou pra banheira e imaginou Yuna lá dentro, tomando seu banho, brincando, sorrindo, olhando pra ela e por fim, morta.
Olhou para os shampoos, cremes caros, segurou a toalha dela por alguns segundos, parecia ainda ter o cheiro de Yuna nela, mesmo não o conhecendo bem. Mas soube reconhecer aquele perfume que ela tinha sentido raras vezes, por um instante parou de pensar que aquela mulher estranha a esperava do outro lado da porta.
Aquilo tinha a fascinado de um jeito tão esquisito, como se fosse um transe, trocou de roupa e se olhou no espelho, uma camisola semitransparente branca que lhe caia até os joelhos. Não achou que combinasse com ela, talvez se prendesse o cabelo...
Estava tão envolvida com as coisas de Yuna que nem ligou pra quando Irene disse que ela ia acabar se apaixonando por uma defunta.
Talvez fosse melhor que sua paixão por Vic, Yuna vivia num mundo tão diferente do dela... Tinha tudo que podia querer, era mimada, bondosa, rica, ingênua e amada. Uma princesinha de contos de fadas.
Elisha se viu observando um dos batons dela, vermelho, imaginou os lábios dela ainda viva usando aquilo.
Seria aquela paixão de Yuna por ela mera pena?
Por Elisha ser tão infeliz e ela ter uma vida boa dessas?
Ela não sabia o que estava fazendo, não devia fuçar as coisas de Yuna. Guardou o batom e suspirou, saiu do banheiro e deixou suas roupas em cima de um criado, virando-se pra Luise que estava sentada na cama.

-Está linda Elisha. Esse era o favorito dela. – O sorriso foi sincero.

-Disse que sabe por que eu vim. – Elisha não a olhou nos olhos, quis ir direto ao ponto e acabar de uma vez com aquela ansiedade.

-Sim, meus empregados viram você com Victoria na cidade, eu deduzi o resto. Vou fazer vista grossa quanto a isso, já que vocês querem descobrir quem fez aquilo com a minha filha.

-Acha que foi homicídio?

-Victoria não te disse? Foi um sacrifício, um ritual. Não sei por que Yuna ou o objetivo de quem fez isso, mas nós encobrimos os detalhes.

Era assustadora a normalidade na voz de Luise, a garota estava começando a entender o que Vic quis dizer com “Família estranha”. Luise não tirava aquele sorriso do rosto um segundo se quer. E a idéia de Victoria saber e não ter dito a irritou profundamente.

-Suspeita de alguém?

-Esse tipo de coisa, ritual, só pode ser feito dos Sullivan. Eles são superiores a minha família, Kayoshi, na organização que nós chamamos de “Black Rose”. Aquela mulher, a matriarca, Anita Sullivan é terrível... A mãe de Victoria. Não me surpreenderia se fosse coisa delas.

-Então Victoria está na lista? – Sullivan, Kayoshi, Black Rose... Aquele papo era bizarro e clichê demais pra ela. Não queria acreditar que Vic poderia ter matado Yuna. Mas não podia duvidar disso também.

-Apesar da rebeldia, ela é muito parecida com a mãe. Adoram brincar com vidas humanas como se fossem crianças com insetos. O único afeto que elas têm com as pessoas é o mesmo que se tem com um animal de estimação.

Era engraçado ouvir isso, pois era a mesma descrição de Vic sobre o amor dos pais de Yuna para com ela.
Elisha estava confusa, como se estivesse sendo atacada por todos os lados. Não sabia em quem confiar se é que podia fazê-lo.

-E por que eu deveria acreditar em você?

-É uma escolha sua Elisha. Eu não me importo, só quero a verdade. Acredite ou não, eu amava minha filha. Mais que tudo...

Aquelas palavras a tocaram um pouco, não soube o motivo, não havia mentira na voz de Luise. Talvez ela tivesse julgado mal, ficou quieta.

-Nós éramos felizes aqui, mesmo perdendo a irmã dela. Mesmo agora que Anita me tirou meu marido, se Yuna estivesse aqui... Estou sozinha com os empregados nessa casa. Desde que ela se foi tudo aqui perdeu o brilho.

-Tinha uma irmã? E o que houve com seu marido? – Eram perguntas rudes e frias, mas ela precisava saber.

-Não posso te falar sobre as tradições da Black Rose, mas a irmã gêmea de Yuna nunca chegou a viver. Já meu marido foi punido quando se voltou contra Anita, depois que ela se recusou investigar a morte de Yuna. Mas ele morreu nos meus braços, diferente da minha filha... – Elisha continuou calada – Tem sido difícil pra mim, mas eu vou adotar outra criança em breve.

Aquilo chegava a irritá-la, por que ela era tão submissa a essa tal Anita Sullivan a ponto de aceitar que ela matasse seu marido assim? Aquele sorriso no rosto de Luise parecia triste e melancólico agora. Não era mais igual ao de Yuna.

-Eu sei que não vai substituir Yuna, mas talvez faça minha alegria voltar. Nossa família não pode acabar por causa dessas tragédias. – Ela percebeu que Elisha estava inquieta com aquilo e mudou de assunto. – Eu sou grata a você, Elisha. Agora entendo porque Yuna te escolheu.

-Entende? - Ela se sentiu melancólica.

-Sim. Você é forte, é especial. Eu posso ver em seus olhos.

-Mas... – Elisha não estava acostumada com elogios daquele tipo, tinha maltratado Yuna por tanto tempo, mas mesmo assim elas não a culpavam de nada. Sentia-se confusa, insegura, impotente. Como se Luise estivesse sobreestimando ela.

-Amor não é algo pra se entender. – Ela levou os olhos azuis pra uma foto de Yuna. – Quando ela me contou eu fiquei feliz. Mesmo você sendo outra menina, mesmo você sendo um tanto fechada. Ela confiou em mim, as crianças de hoje em dia não são assim com os pais. Eu sei que ela foi feliz, sempre foi. E eu te agradeço por finalmente enxergar esse amor dela.

Elisha notou que os olhos de Luise estavam vertendo algumas lagrimas. Aquela mulher tinha perdido tudo que amava de formas brutais, mas assim mesmo não tinha medo de chorar e continuava sorrindo. Um sorriso estranho, triste, mas era um sorriso de esperança. Seus próprios olhos lacrimejaram um pouco, embora ela quisesse dizer, não conseguiu. Abaixou a cabeça e entreabriu a boca devagar. Luise sim era forte de verdade.

-Eu tenho certeza de que ela está ainda mais feliz agora, porque você correspondeu aos sentimentos dela. – Luise notou que Elisha estava se culpando de alguma forma, que estava envergonhada de si mesma. Então enxugou as lágrimas e ajeitou os cabelos dourados, sorrindo pra Elisha de forma animada.

-Posso te pedir um favor, Elisha?

-Pode... –
A resposta não teve o mesmo animo.

-Eu queria dormir aqui com você. – A olhou de forma carinhosa, estranha. – Yuna me disse que você perdeu sua mãe ainda muito jovem, então a gente faz um acordo. Só por essa noite eu sou sua mãe e você é minha filha. Eu não sei quanto a você, mas eu queria poder dormir abraçada com ela uma ultima vez, pra conseguir me despedir. Que tal? Vai me ajudar?

Aquela proposta pareceu estúpida demais para Elisha, Luise já tinha superado a perda de Yuna na maioria das partes. Mas será que era Luise que precisava superar uma perda ali? Será que era ela mesma que ia ser ajudada com isso?
Elisha ergueu os olhos amarelados para ela, vacilante, ela era como Yuna. Lembrava um anjo em todos os aspectos, as palavras daquela mulher a tocaram em um lugar que a morena mesma tinha decidido esquecer que existia.

-Tudo bem... – Ela não soube e não quis recusar.

A principio ela se sentiu insegura, tímida e se afastou um pouco de Luise na cama, mas a mulher virou-se pra ela e a abraçou, acariciando-lhe os cabelos e repousou a cabeça dela em seu peito, começando a cantarolar uma canção infantil de bruxas com uma voz serena e agradável. Adormeceram rápido, aquilo foi estranho de fato.
Luise não era como Elisha pensou ou como Vic dissera. Ela realmente amava Yuna, assim como Elisha amava a sua própria mãe.
Talvez aquela tenha sido a experiência mais estranhamente agradável pela qual a garota passou.
Aquilo que ela estranhava tanto nas atitudes de Luise era simples de entender, amor materno; sentir-se segura, confortável e amada nos braços de uma mulher como ela,um amor vindo de família.
Isso era algo de que ela sentia falta.
E nem imaginava o quanto.

O dia seguinte foi agradável, Elisha recebeu até café da manhã na cama. Luise estava a tratando de maneira tão carinhosa que chegava a parecer irreal. Ela ficou mesmo com a sensação de estar sonhando até ter que ir embora daquele lugar.
Nem reparou em Leon e sua mãe o dia todo...
Aquela tarde foi somente dela e de Luise.
“Quero que você fique com aquela roupa da Yuna, e Elisha, saiba que você sempre vai ser bem vinda aqui.”
Elas se despediram e Elisha a observou do carro com um sorriso discreto e quase imperceptível no rosto até perdê-la de vista.
Já era hora de seguir em frente.
Não por Victoria e nem por Yuna, mas por ela mesma.

3 comentários:

  1. Nesse aqui alguns acharam esquisito ver Elisha amolecendo. Saiu mesmo do normal dela, mas acho que é assim com todo mundo.
    A gente nem sabe o quanto coisas melosas mexem com a nossa cabeça. '-' "

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  2. Não achei esquisito, ela está em um "auto-conhecimento" de si mesma, isso é bom, mostra que ninguém é de ferro. Gostei do comportamento de Elisha nesse capítulo ao todo.

    A parte da casa da Yuna é sinistra e intrigante a conversa com a mãe dela, os fatos ocorridos são estranhos e tristes. E sobre dormir junto com a mãe dela, well, é estranho de fato. [2] º-º'

    Um ótimo 'final', boa conclusão até aqui.

    "Já era hora de seguir em frente.
    Não por Victoria e nem por Yuna, MAS POR ELA MESMA"

    Muito bom!!!

    D. =]

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