Capítulo I - Mundo Perfeito

Era uma noite escura e fria em Sleepy Hill, uma cidade não notável no meio do nada. Normalmente tudo era assim, parado e silencioso demais. Mas essa noite tinha algo de diferente no ar, sirenes e barulhos vindos de rádios da polícia local ecoavam quebrando um pouco do silencio rotineiro por perto do edifício chamado “Blue Sky”. Os rádios anunciavam que havia sido encontrado um corpo de uma jovem de provavelmente 17 anos, a causa da morte: Afogamento e havia possibilidades de ser homicídio.
Ela se encontrava nua na banheira, do mesmo jeito que havia sido encontrada, sua pele era pálida talvez por causa de estar muito tempo debaixo d’água, o rosto lembrava a definição de algum anjo, seus cabelos ondulados e longos se misturavam com a água serpenteando por ela, sobre seus seios, e os olhos azuis bem claros expressavam um tipo de terror intensificado pelos seus lábios, ainda um pouco rosados, semi-abertos.
Aquela cena de certa forma possuía uma beleza um tanto macabra, talvez fosse por isso que ninguém ainda tinha tido coragem para retirar o corpo da banheira.
Essa beleza, então, foi finalmente quebrada pelas palavras de um dos oficiais que estava presenciando a cena:

-É uma pena, ela até que era gostosinha... – murmurou ele, usando do típico vocabulário xulo que as pessoas estão acostumadas. Seu superior respondeu rapidamente, também observando a jovem sem vida deitada sob a água.

-Não é hora pra esses comentários. Recolham o corpo!

Nessa mesma hora num outro local da cidade, palavras também ecoavam quebrando o silêncio que habitava a mente de outra jovem.
Palavras melancólicas, realistas e de certa forma diferentes de outras.

-(Os humanos são tão estúpidos... Tão vulgares...
Tem uma vida tão curta e a desperdiçam com drogas, bebidas e com sexo só pelo prazer que isso proporciona, como se não tivessem outro objetivo ou interesses além desses. Bem, talvez não tenham. Mas pelo menos eles também vivem pra matar uns aos outros e nesse ultimo, até que eles colaboram pra um mundo melhor.)
-Não é mesmo Morrigan ?- Disse a menina de cabelos negros, que lhe caiam pelas costas, fitando sua gata de estimação com seus olhos que tinham uma cor próxima a um amarelo claro, que lembravam os olhos do próprio animal. Olhos melancólicos, profundos, com uma aura solitária.
-Como se você fosse entender. Seria ótimo se alguém conseguisse. – Falou num tom baixo como se esperasse que a gata fosse responder.

Elisha Sayonomi, a nº 07 do 3º ano do Colégio Dark River, cabelos negros, longos e lisos, que se ondulavam um pouco sobre seu rosto em direção a sua boca, que raramente se abria. Seu corpo era esguio, com curvas acentuadas justamente onde ela precisava pra arrancar alguns suspiros de quem ficasse olhando muito. Não era alta, mas também não muito baixa, tinha um ar sempre calmo e indiferente, uma beleza enigmática que se tornava ainda maior pelo branco bem claro da sua pele, que auxiliava no seu ar de mistério.
No momento ela estava vestida com seu pijama rotineiro, “De ficar em casa”, shorts justos e finos, uma camisa sem manga, larga e curta que deixava um pouco de sua barriga a mostra. Estava sentada na frente do PC no seu quarto, pensando em como viver podia ser tão chato.
Seu único hobbie, ficar ali procurando algo na internet e perdida em pensamentos.

-(Sempre tem alguém de luto nesses chats... Como se eles realmente ficassem tão tristes por causa desses novos defuntos. Sempre querem ser as vitimas.)- Nesse momento ela viu algumas coisas e conseguiu deduzir quem tinha morrido dessa vez, ela era muito boa nisso. Ficou ainda mais presa nos pensamentos então:
-(Então dessa vez eu conheci o defunto, ou melhor, defunta...
Era a Yuna Kayoshi da minha sala, uma menina boa perto dos padrões.)

Ela lembrou quase perfeitamente do primeiro diálogo que teve com Yuna, sempre sorridente, elas ainda eram pequenas quando a menina perguntou entre sorrisos para a outra:
-Ei, Elisha-chan, por que você está sempre sozinha?
-Quem se importa com isso? – Foi a resposta seca e sincera que saiu da boca da menina de cabelos negros naquele momento.

Má, insensível, triste ? Enfim, talvez nem ela soubesse.

-(Nós estudamos juntas desde pequenas...)- continuava ela na sua mente –(Não, ela não era minha amiga. Mas acho que foi a que mais se esforçou pra ser. Sempre sorrindo e sendo carinhosa com todo mundo. É uma pena e ao mesmo tempo típico...)
As palavras seguintes acabaram escapando da sua cabeça e lhe fugindo pela boca:
-Nesse nosso mundinho perfeito, só morre cedo quem não merece. Boa noite, Yuna.

Ela se sentiu menos mal pela resposta que tinha dado para Yuna há uns anos atrás, de alguma forma foi como se ela fosse ouvir esse “Boa noite”.
Jogou-se na cama, após desligar o PC, ouvindo algum álbum de Within Temptation, tentando dormir.
Enfim, amanhã era outro dia entediante de aula, e ela sabia qual seria o assunto principal da turma.

O silêncio havia retornado à mente da garota, por aparentemente muito pouco tempo. Acordar cedo era horrível, parecia que ela tinha se deitado apenas uma hora e o maldito despertador quebrava sua paz com aquele apito irritante. Falta de coragem pra se levantar fundida com vontade de arremessar o relógio redondo com orelhas e cauda de gato preto de plástico contra a parede, ela adorava gatos pretos, se controlou e ergueu a mão sem nenhuma vontade, desligando o despertador e falando um palavrão baixinho.
Arrastou-se até o banheiro e se despiu no mesmo animo, se colocando sob o chuveiro e deixando a água morna cair e escorrer sobre seu corpo, despertando de novo seu dialogo mental consigo mesma, era sempre assim.

-(Isso tudo é tão monótono, por 10 anos a mesma rotina. Desde que minha mãe morreu. Era pra eu ter sido criada pelo pai, mas quem disse que ele se importa ? Sobrou pros avós, que também morreram fazem 3 anos.)

A morte e a solidão sempre marcaram presença na vida dela, ninguém tentava a compreender e ela não tinha com quem contar. Como se ela quisesse ou precisasse...
Vestiu o uniforme negro da escola, naquele básico modelo japonês colegial de saia e blusa social com laços, penteou os cabelos de qualquer jeito e apanhou a mochila saindo de casa, nunca fora vaidosa a ponto de usar perfumes, batons ou acessórios pra ir na escola. Com exceção da sua gargantilha preferida, que lembrava uma coleira negra com botões metálicos.
Seguiu seu caminho pensando que não era tão ruim, afinal morar sozinha e ainda ser sustentada pelo pai era ótimo. Principalmente porque ela já havia se acostumado com aquela solidão toda.
Logo avistou a placa anunciando “Colégio Dark River”, era um local sombrio como o resto da cidade, mas movimentado e barulhento.
Estava quase dentro da escola quando sentiu um tapa amigável no ombro e virou-se pra ver. Era Haruna Mayumi a nº 09, bonita, quase todas meninas do colégio eram, principalmente as da sua sala.
Olhos verdes que transmitiam calma e cabelos negros que serpenteavam até seus ombros, ela era mais baixa que Elisha e mais “encorpada”.
Haruna sorriu, como sempre, e disse animada:

-Sempre chega cedo, né, Sayonomi-chan ?! Isso que é gostar de escola !

-Pode apostar... – Respondeu Elisha se lembrando de Yuna que também a recebia sorrindo todos os dias. Mas a partir de hoje ela não estaria mais lá.

Ao entrar no colégio, viu Haruna se afastar para o meio da multidão de alunos, parou e murmurou pra si mesma como se estivesse apresentando o lugar a alguém:

-Bem vindos ao zoológico.

Foi direto para o banheiro feminino, estava sonolenta ainda e precisava ao menos molhar o rosto, para ver se resolvia. Lá dentro ouviu duas meninas do ginasial comentando:

-Foi por afogamento que a tal da Yuna do 3º ano morreu?

-É, mas também disseram que foi assassinato.

Ambas se assustaram ao perceberem que Elisha estava ali parada olhando pra elas e ouvindo a conversa, imediatamente elas desconversaram e saíram do banheiro como se tivessem medo da garota. Ninguém parecia gostar dela naquele lugar, talvez uma pessoa tivesse, mas agora...
Ela soltou a mochila no chão e deu uma breve olhada no espelho, falando de novo pra ninguém:

-Pois é Yuna. Ficou popular...- E encheu as mãos de água no lavatório, molhando o rosto e esfregando os olhos, e voltou a abri-los assustada quando ouviu uma voz serena e terrivelmente familiar sussurrar nos seus ouvidos:

-Por que você ainda está sempre sozinha, Elisha-chan ?

Ela virou-se imediatamente e não pode acreditar no que viu, era ela, Yuna estava de pé na sua frente, com o uniforme da escola e os cabelos loiros presos como ela sempre usava, olhando passivamente pra Elisha que havia perdido a fala.