quinta-feira, 10 de junho de 2010

[Vol.2] Capítulo 6 - O Monstro

Quase um ano inteiro havia se passado desde tudo que aconteceu.
Ele havia tentado trazer a coisa mais preciosa que teve dos mortos, a única pessoa que conseguiu amar um monstro como ele. E no final tudo tinha falhado. Suas esperanças, seus objetivos, tudo acabou. O único espaço no coração despedaçado daquele homem era ocupado por apenas um sentimento: Vingança.
Tudo tinha sido culpa daquela mulher. Se não fosse por ela, aquele maldito ritual... Tudo estaria bem agora. Por que somente ele tinha ficado sozinho no fim?
Não era esse o final que ele queria.
Ele odiava a solidão, a carência, a fraqueza que ele escondia por trás daqueles insensíveis olhos de uma coloração curiosa, avermelhada. Eles haviam mudado de cor misteriosamente há um tempo, ele nem sequer quis entender. Seus pesadelos não o deixavam pensar em o que ele era, isso estava obvio.

“Monstro! Assassino! Quantos já matou? Quantos fez sofrer? Quantas pessoas mais você vai destruir, tomar a vida? Quantas pessoas mais vão ter que pagar?”

- Apenas mais uma.

Sim, era aquele demônio quem ele queria. Aquela mulher. Aquela maldita bruxa dos olhos verdes, a culpada por toda a sua desgraça. Aquela que assombrava sua mente até quando ele tentava dormir. Tão doce e tentadora... Aparecia em seus sonhos como uma súcubo, o envolvia nos braços, beijava seu rosto, o pescoço e até mesmo os lábios algumas vezes.

“Você nunca mais vai tê-la de novo. Por que lutar contra o que sente? Você perdeu o que tinha, eu estou lhe oferecendo algo bem melhor em troca. Tente negar que você não quer estar comigo. Que não se sente tentado a voltar para o trono que eu te dei e reinar junto comigo. Não consegue negar, não é? Você me pertence, eu te escolhi. Pare de ser tão bobinho... Eu sei exatamente o que você quer. Você me odeia, eu sei, eu sei. Mas ao mesmo tempo você me ama. E eu posso te dar o que você tanto quer, amor.”

- Maldita!

Mais um pesadelo. Kasuya Ishida acordou naquele hotel barato que tinha conseguido se hospedar por alguns dias. Estava suando, apesar do clima congelante lá fora. Seus cabelos prateados lhe caiam no rosto, desarrumados. Eram curtos, mas chegavam a lhe cobrir os olhos na frente se ele ficasse cabisbaixo como estava agora. Tinha passado muitas noites em claro, pelo mesmo motivo. Por que Anita Sullivan aparecia daquela forma nos seus sonhos? Ele podia sentir o cheiro dela sobre si. Aquilo era mais um tipo de feitiço? Era ridículo acreditar em feitiços com a idade dele, mas a sanidade que restava na cabeça daquele garoto já estava se esvaindo. Sentado com uma pistola na mão, apontando pra aonde Anita estava deitada do seu lado, nos sonhos. Cobertas rubras desbotadas e amassadas, a cama chegava a ser confortável. Mas o quarto era bem pequeno e pobre. Como ele estava vivendo? Ele fazia o que sabia melhor. Matava. Estava matando por dinheiro.
Não era nada difícil quando se tinha os contatos certos. Porém aquela noite parecia diferente. Ele sentia a presença da líder da Black Rose perto de si. Aquelas vozes na sua cabeça o alertavam o tempo todo: “Ela está por perto.”
Chacoalhou a cabeça, espantando os vestígios do sonho.
Kasuya sempre teve um corpo potente, calejado. Apesar dos músculos, havia algo errado com o seu braço direito já fazia um tempo. Doía bastante as vezes, o suficiente pra impedir alguns movimentos. A dor em si nunca foi nada.

Desde pequeno ele tinha sido acostumado a isso. Era torturado pelo pai sob o pretexto de se tornar um homem forte de verdade, ele nunca havia pedido pra ser forte. Mas que escolha ele teve? Não importava. Ele teve alguém que o amasse, uma única pessoa. Sua irmã. Mas isso também não importava mais. Ela estava morta.
Por culpa da Black Rose ela estava morta.

Sempre se lembrava de coisas sobre Erin, a sua gêmea, mas ele mesmo não tinha imaginado que tipo de mulher ela havia se tornado antes de eles terem se encontrado da ultima vez. Duvidas. Ela teria mesmo se recusado voltar à vida quando ele tentou aquele ritual dos Sullivan? Mais perguntas do que respostas. Mais problemas do que soluções.
O clã Ishida, do qual ele foi líder depois de ter assassinado seu pai adotivo, Tetsuo, estava em ruínas. Anita tinha o presenteado com a liderança de um clã da Black Rose. Ela oferecia tudo que ele precisava: amor, carinho, importância... Por que ele se recusava a estar ao lado dela? Vingança não estava sendo um motivo forte suficiente naqueles últimos dias.
Sua cabeça estava cheia de duvidas. Sobre o amor de Erin, sobre o que ele devia ou não fazer. Bastava estender a mão e apanhar o que Anita queria lhe dar.
Erin estava morta. Qual era o ponto em abrir mão disso por ela?
E daí se era a mulher responsável pela morte dela que estava lhe oferecendo salvação?
O que mais ele tinha a perder? Nada. Mais nada.

O banho o ajudou a despertar. Estava zonzo. Sendo torturado por seus pensamentos.
Tinha que matar aquela maldita. Aquele demônio.
Ela matou Erin, a pessoa mais importante, a flor naquele jardim de espinhos. Não podia deixar isso barato, Anita Sullivan tinha que pagar.
Ligou o som, a música sempre o ajudava a parar de pensar. Gostava de ouvir música alta, revoltada. Metal industrial, no caso, uma banda sueca chamada Pain. Era ótimo.
Kasuya jogou-se no sofá. Colocou alguma bala na boca e ficou olhando para o teto. Não tinha o que fazer ainda. A localização de Anita ainda estava fora do seu alcance, a melhor idéia era fingir aceitar voltar para a Black Rose. Pra então acertar a mulher. Mas com a cabeça como estava, ele acabaria voltando pra beijar os pés dela. Implorar pelo seu amor.
Isso era fora de questão. Precisava matá-la sem deixar que ela falasse ou olhasse pra ele. Seria impossível caso ele resolvesse fingir. O que o despertou do seu transe causado pela musica foi aquele barulho. Um simples 'clic' que ele conhecia muito bem.
Estavam apontando uma arma pra ele, e bem de perto.

A primeira pessoa em quem pensou foi a filha daquela que ele queria matar, Victoria Sullivan. Mesmo que eles estivessem num tipo de trégua devido aos últimos acontecimentos, Kasuya sabia o quanto aquelas mulheres eram na verdade cobras. Foi no reflexo da tv mixuruca do hotel que ele viu a silhueta feminina, parada ali bem perto dele, ao lado daquela janela igualmente pequena e suja. Aquele perfume... Não era de Victoria.
Teve que ser ágil, apanhou as dezenas de revistas que estavam na mesinha de vidro na sala e jogar pro alto. De uma forma que bloqueasse a visão da atiradora e então pulou por cima do sofá, aproveitando a cobertura. Ouviu o disparo mesmo assim, sentiu a dor.
O cheiro férrico de sangue misturado com pólvora tomou conta do ar, mas tinha sido apenas de raspão. No braço. Seu pequeno plano tinha dado certo, o pé do rapaz conseguiu ser mais rápido que o dedo daquela mulher que estava no gatilho. Acertou a arma, mandando-a pra longe. E provavelmente fazendo um estrago na mão da pessoa.
Sim... Um monstro, em todos os sentidos. A força, resistência e agilidade daquele albino eram incríveis. Podia agradecer tanto ao seu pai quanto à Tetsuo por isso. Mas especialmente aquela forma de usar ódio como seu combustível. Seus olhos avermelhados eram intimidadores, como se refletissem o pior instinto assassino de todos. Mal tinha acertado a mão, girou-se e acertou os calcanhares. Derrubou a invasora em questão de segundos. Mas ela não era tão inofensiva assim, acertou um chute no queixo do rapaz antes que ele caísse por cima dela, a finalizando com um soco. Jogou-o contra o sofá e correu para a arma, que estava próxima a porta do banheiro.
Àquela altura ela havia percebido que não teria chances contra ele em combate corpo-a-corpo. Kasuya por sua vez, não tinha nada útil ao alcance, então agarrou a assassina pelo pé, naqueles jeans longos com botas, e a puxou pra si. Não foi rápido o suficiente pra impedir que ela pegasse a arma, mas sim pra descarregar a arma, quando esta estava apontada pra sua cabeça. Usando seu truque pra fazer o pente cair.
Foi então que ele pode ver o rosto dela. A feição dela se resumia em pura rebeldia, com pitadas de ódio no olhar. E como ele conhecia bem aquele sentimento... Poderia identificá-lo em qualquer olhar. As íris daquele olhar em especial eram negras, sombrias. Combinavam com aquele cabelo liso, preso num rabo de cavalo discreto. O marcante era a mecha vermelha única que estava pintada na franja dela. Um tipo de visual punk ou coisa do tipo? Kasuya nunca entendera de moda mesmo. Era uma mulher bela, mais velha que ele aparentemente, do tipo que qualquer roqueiro dos tempos de hoje chamaria de santa, um símbolo. Aquela expressão de revolta começava nos seus olhos profundos pra terminar naqueles lábios volumosos, que soltavam a respiração ofegante, a adrenalina.
A garota sabia que nunca estivera tão perto de morrer quanto agora, mas parecia ser determinada, Kasuya pode ver isso nos olhos dela também. Ela queria matá-lo, tinha ido ali com essa intenção e não pretendia voltar atrás. Então por que ele hesitou?
Os lábios carnudos entreabertos com as pontas dos dentes a mostra, a respiração quente que tocava seu rosto branco furiosamente. Aquilo o distraiu por alguns segundos, e a mulher também pareceu hesitante, o que foi quebrado rapidamente por aquela determinação. Ela atingiu a cabeça dele com a arma, fazendo-o cair pro lado. Teve tempo pra recarregar a pistola, mas Kasuya conseguiu alcançar uma revista que estava no chão, sendo salvo por um mero pedaço de papel novamente. Atingiu o rosto dela com a revista aberta, atrapalhando a visão de novo. O próximo disparo nem o acertou, foi contra a parede. E num impulso ele se ergueu brevemente no chão e caiu contra ela, acertando um soco fulminante em cheio naquela revista. Como a capa mostrava o atual presidente espanhol, ele pode bater sem dó. Nada de cavalheirismo pra uma assassina. A nocauteou facilmente. Mas tinha sido por pouco.

Depois de tirar a arma das mãos dela, o jovem se arrastou e sentou-se de costas pra parte de trás do sofá. De cabeça baixa, ofegante e atordoado pelo golpe que recebeu. Devia ser uma das cadelinhas da Black Rose. Como Ayako e Sadako Kaori. Aquelas que cuidavam do trabalho sujo pra Anita. O que viria a seguir? Por sorte aquele bairro era barra pesada. As paredes grossas seguraram as duas balas que foram disparadas contra ele, e a musica abafou boa parte do som dos tiros. Talvez ninguém viesse perguntar nada. Mas ele não podia deixá-la solta.
Quando a dor passou, tanto a na cabeça quanto a no braço, tornou a analisá-la melhor. Assim como ele, parecia ter um corpo forte. Era notável que ela teria pernas poderosas por causa daquelas calças justas, dava pra se ver o porte físico delas. Os braços e abdômen também exibiam músculos. Eram visíveis, graças a blusinha preta que ela usava por baixo daquela larga jaqueta de couro marrom. Tinha alguns piercings nas orelhas e um no umbigo. Reparar demais fez Kasuya soltar um ‘tsc’ e bater contra a testa.
Arrancou alguns dos cabos da tv e de outros eletrodomésticos que estavam no quarto, e a amarrou. Usou da sua ironia oculta pra colocá-la na banheira, cada membro bem separado um do outro. Tirou-lhe a jaqueta, as botas, cinto e a revistou pra ter certeza que estava sem nenhuma surpresa escondida. Só não conseguiu checar as roupas intimas. Por algum motivo sentiu-se sem jeito pra isso. Os membros foram firmemente amarrados contra os apoios laterais, encheu-a de água e ligou uma torradeira na tomada que ficava no canto daquele cubículo. Arrumou-a sobre uma mesinha bamba, de forma que ela pudesse cair na água, entre as pernas da mulher se ela fizesse algum movimento brusco. Aquilo era perfeito pra imobilizar alguém daquele tipo.
Não possibilitava nem tentativas de se mexer muito.

Depois disso, apanhou uma canetinha vermelha e escreveu no azulejo em inglês: "Se eu fosse você, não tentaria me mexer. Já volto."

Primeiro ele analisou o braço. Sangrou, mas não foi nada profundo. Deu um jeito naquilo fácil. Depois colocou uma blusa e um casaco. Apanhou a pistola daquela garota e colocou no cinto. Caminhou pra fora do quarto. O hotel era até aconchegante, mas mal cuidado. Pintura descascando, carpetes encardidos... Não fazia mal. Ele não ia ficar ali tanto tempo assim.
A intenção era pegar algo pra comer. Estava acabado de fome. Nada que uma daquelas lojas de hambúrgueres vinte e quatro horas não resolvessem. Comprou três lanches por via das duvidas, e dois refrigerantes grandes. Levou tudo de volta pro quarto e colocou na mesinha. Depois se livrou do casaco, foi pra dentro do banheiro mais uma vez. A mulher já estava acordada. E o encarou com um olhar sarcástico. Kasuya retirou a arma da cintura e a colocou em cima da pia de mármore. Retribuiu o olhar dela friamente.
Até que ela falou:

- Quanta criatividade. O que vai fazer depois? Ficar me olhando? É um tipo de fetiche? - Tinha a voz agressiva, como a sua aparência. Mas nada intimidador. Pareceria até infantil se não fosse um pouco grave. Kasuya não respondeu - Vocês da Black Rose são estranhos...

- O que quer dizer com isso? - Foi curto.

- Ora ora... Ele fala. - O albino usou de um olhar mais severo, ela abriu a boca - Você é Kasuya Ishida certo? Um dos lideres... Primeiro, acho você sem proteção nenhuma. Segundo, depois de me bater você arranca minhas roupas e me põe numa banheira. O que é isso? Um tipo de ritual satânico ridículo desse culto-máfia de vocês?

Ignorou a mulher novamente. Então ela tinha ido ali pra caçar um membro da Black Rose. Só estava mal informada, já que Kasuya não era mais o líder de família alguma. Então ela não era bem uma inimiga. Isso seria bom ou ruim?

- Não é do tipo que fala ahn?

- Não sou mais o líder de um dos clãs que você procura.

- Besteira! Eu sei o nome dos mais remunerados nesse ninho de cobras fantasiadas de bruxas modernas! Não tente limpar a sua barra.

- Não achou estranho eu estar sem proteção e num hotel de quinta? Como você mesma disse?

- Hunf... - Quando ela desviou o olhar, mostrou que não estava tão convicta - Suponhamos que seja verdade, você ainda fica melhor morto.

-... Por que queria me matar?

- Não é nada pessoal lindinho. Eu só não vou com a cara da seita de vocês. Então estou bancando uma "agente inquisidora" moderna. Queimem as bruxas! Sabe como é.

- Uma caçadora de bruxas... - Soltou um 'tsc' intrigado. Ele não tinha nada a ver com bruxas. Sua família, Ishida, era apenas um tipo de segurança pras verdadeiras bruxas. Os Ishida não mexiam com rituais, mesmo que tivessem uma religião voltada pro paganismo.

- Qual a graça?

Deixou-a falando sozinha. Voltou pro sofá e comeu aquele lanche que tinha comprado, junto com o refrigerante. O som tinha ficado ligado, mas ele não podia mais ligar a tv. Não fazia mal, sabia que nunca tinha nada do seu interesse nela. Depois que terminou de comer, haviam sobrado o segundo copo de refrigerante e um hambúrguer. Pra ser sincero consigo mesmo, Kasuya tinha comprado aqueles para a garota.
Não que ele soubesse que não ia precisar matar ela, mas mesmo assim. Prisioneiros precisavam comer. O rapaz voltou pra porta do banheiro e olhou pra ela. Suas palavras saiam secas. Frias e afiadas como adagas de gelo.

- Está com fome?

- Olha só... Ele é um cavalheiro. - Kasuya se irritou com aquela ironia, deu as costas e rumou pra fora do banheiro. Mas foi impedido pela voz dela - Tá bem, espera... Eu to com fome sim. Não como direito há dias.

Ele saiu mesmo assim. Apanhou o lanche e o refrigerante, sentindo-se um idiota de coração mole por aquilo. Mas não se importava tanto. Mesmo pra ele, ficar sozinho era depressivo. Talvez com a garota por perto ele parasse de sonhar com Anita e de ouvir aquelas vozes na sua cabeça. Deixou o copo grande de plastico no chão, tirou a torradeira do banco e o usou pra sentar-se perto dela. Estendendo o pão pra sua boca. De forma brusca.

- Não que eu queira reclamar de receber comida na boca, mas não poderia me desamarrar?

- Não.

- Se você não é mais um líder na Black Rose, não tenho porque tentar te matar.

- Ou você come assim ou eu jogo na água pra você tentar abocanhar o que flutuar.

- Tudo bem macho alfa... - Olhou pra ele com aqueles olhos negros. Então deu a primeira mordida. Kasuya não se incomodou, e nem se alterou. Não era do estereotipo "menino tímido que fica nervoso perto de mulher" a tal da menina rebelde só voltou a falar depois de duas goladas no refrigerante - Você bate forte.

Kasuya olhou pro rosto dela. Tinha ficado roxo nas partes próximas à orelha, onde ele tinha acertado. Não ligava... Se ela sabia o que estava fazendo, sabia dos riscos. Deu de ombros.

- Como você saiu? É só pedir pra pendurar as chuteiras e eles te liberam?

- Não. Na verdade eles querem me matar também... - Silencio. Não estava acostumado a conversar -... E você está contra eles por quê?

- Seus comparsas mataram minha família. Simples né? - Ela riu, mas o garoto conseguiu ver a melancolia disso - Você saiu só por ter se cansado de brincar de Harry Potter?

Mais uma vez, silêncio. Kasuya ficou calado por algum tempo. A garota até tinha desistido de ouvir alguma coisa a mais dele. Mas ouviu...

- Mataram a minha irmã. E ela era a única pessoa que eu tinha nesse mundo.

Por que ele tinha contado? E pra alguém que tentou matá-lo...
Kasuya não se entendeu. Isso não era da conta daquela mulher, não ia servir de nada ter explicado seus motivos pra ela. O que ele queria com isso afinal... Simpatia?

- Nossa... É serio? Pensei que eles fossem leais uns aos outros...

O albino não respondeu. E nem precisava olhar para a sua nova colega pra saber que ela tinha ficado impressionada com o que ouviu. Aquela mascara de sarcasmo caiu, pela primeira vez ela pareceu sincera. Devia entender a dor de perder a única família.

- Estamos no mesmo barco então. - Ela virou pro alto, aconchegando a cabeça na banheira - Isso é reconfortante, não é? Achar alguém que te entende.

Kasuya olhou pra ela friamente. Não entendeu o que ela quis dizer com aquilo, mas teve uma idéia do que fosse. Esperava conforto vindo dele? Um monstro, assassino... Kasuya era pior que ela, não importava o que ela já tinha feito. Mesmo que tivesse matado mais, sofrido mais, o homem de cabelos prateados sabia bem a diferença dos dois. Eles não eram iguais, não importava o que ela dissesse.

- Ei... Pode me dar um cigarro?

- Eu não fumo.

- Na minha jaqueta tem. Pode pegar?

Foi pra aonde tinha deixado a tal jaqueta, revistou ela e apanhou o maço de cigarros. Junto com um isqueiro. Depois voltou pro banheiro e frustrou os planos dela, que achava que ia ser solta agora. Colocou o cigarro nos lábios da mulher e acendeu.

- Não tem como fumar assim. - Resmungou ela.

- Então pare de fumar. Isso piora suas condições físicas.

- Meu físico é ótimo. Não tá vendo?

Um risinho malicioso. Kasuya não tinha olhado muito pra ela além de quando tinham acabado de lutar. Mas reparando agora, até que ela estava certa. Era um físico ótimo. Atlético, que poderia capturar a atenção de qualquer homem comum. Ou de alguns incomuns... Ele abanou a cabeça negativamente e se afastou.
Será que todas as mulheres mais 'sociáveis' eram desse jeito? Por algum motivo, Kasuya não gostava de ficar perto delas. Algo em garotas assim o irritava.
Foi deitar um pouco, largou ela de molho na banheira.
Só foi acordar depois durante a madrugada, com as tosses. Caminhou hesitante para o banheiro e encontrou a morena ali, acordada ainda. Ele havia esquecido que estava tão frio. E que conseqüentemente a água na banheira iria esfriar. Aquilo ia causar uma gripe horrível nela com certeza. Kasuya se aproximou.

- Pensei que ia me deixar morrer aqui. - A mulher arrumou forças pra rir, enquanto tremia.

- Não era a intenção.

O albino voltou pra cozinha e pegou uma faca, voltando lá pra livrar a garota das amarras. Ela tinha tentado escapar enquanto ele dormia, conseguiu notar pelo fato dos fios estarem afrouxados. Depois de solta, ela saiu da banheira se encolhendo. Estava tremendo de frio.
Kasuya jogou uma toalha pra ela e disse que iria providenciar roupas.
Foi fuçar nas suas próprias, no quarto. Obviamente não teria nada feminino ali. Pegou uma camiseta preta e uma calça de pano, que ele usava pra dormir quando podia escolher uma roupa mais confortável. Roupas de baixo? Isso seria constrangedor.
Alguns minutos depois a mulher saiu do banheiro, enrolada na toalha. Já estava dentro do quarto daquele apartamento velho quando o jovem olhou pra trás. Apertou o olhar quando notou que ela tinha se despido por completo. Jogou as roupas que tinha escolhido pra ela e tentou fazer uma piada sarcástica, já sabia que seria sem sucesso.

- Só não vou ter um sutiã pra te emprestar. - Porém a garota da mecha vermelha riu.

- Essa é a situação mais bizarra em que me meti.

- Pena que não posso dizer o mesmo.

- Eu dou um jeito de secar as roupas. Não vou roubar as suas.

Kasuya deu as costas e saiu do quarto. Conseguiu ouvir o barulho da toalha caindo no chão atrás de si, mas definitivamente não quis se virar pra olhar. Detestava situações assim. Se ela fosse um homem, poderia simplesmente jogá-la pra fora. Mas por que diabos ele conseguia dar trégua a garotas como aquela? Hormônios masculinos talvez. Um monstro também tinha que ser gentil com o sexo frágil às vezes. Ou não.
Deitou-se no sofá e ficou por longos minutos pensando no que fazer. Se podia mesmo confiar nela. Não seria difícil encontrar alguma arma ali e usá-la contra ele.
Seus pensamentos foram interrompidos pela própria garota, que abriu a porta do quarto e saiu. Usando as roupas dele. Até que combinavam com ela, não deixava de ser sexy.

- Se não se importar, peguei uma cueca também. - O albino não quis nem olhar pra ela depois de ouvir isso - A propósito Kasuya Ishida... Você não sabe meu nome.

- Nomes são pra amigos... Eu não preciso saber o seu. - Foi curto.

- É injusto eu saber do seu e você não ter idéia do meu.

- Pra mim Caçadora de Bruxas basta. Combina com você.

- Hmmm... - Ela sorriu sentindo-se lisonjeada por aquilo - Você fala de um jeito bem polido. E fala de coisas estranhas também. Não parece ter um lado espiritual.

- Talvez eu tenha...

- Tem mais alguma coisa quente pra comer?

- Ramen.

- Eu... Posso? - Ela caminhou na direção dele, com os cabelos molhados. Ficou a encará-lo deitado no sofá, parada praticamente do seu lado.

- À vontade... Se quiser ficar com a cama também, não me importo.

- Você é mesmo um cavalheiro. - Soltou um risinho e piscou para ele. Kasuya apenas a encarou friamente de volta - Luvia. É meu nome.

A garota foi para a cozinha e Kasuya ficou repetindo aquele nome pra si mesmo mentalmente. Iria deixá-la passar a noite ali, alguém que acabou de tentar matá-lo. Se ela tentasse novamente, que matasse. Não tinha mais nada a perder e preferia morrer de uma vez a acabar cedendo à Anita Sullivan. Que a morte viesse, e lhe desse o gentil abraço que dera em Erin. O jovem adormeceu, num sono profundo.

Dormiu bem mais do que devia. Quando abriu os olhos ainda estava escuro, mas já era outro dia. Quanto tempo ele tinha ficado sem dormir enfim... Mas não foi com isso que ele perdeu aquele clima sonolento de acabar de acordar. Foi com a pistola apontada pra sua cabeça. Na sua frente, Luvia. O encarando com indiferença.
Então era isso. Traiçoeira como uma própria integrante da Black Rose. Kasuya ficou em silencio, talvez fosse a hora dele de morrer. Não tinha mais nada o prendendo àquele mundo além de vingança. Não valia a pena viver por isso.
Ficou olhando para o belo rosto da sua assassina, esperando que ela puxasse o gatilho.
Notou o quanto ela era linda segurando aquela pistola. Combinava mais com o papel de vingador do que ele próprio.
Os cabelos negros soltos, já secos. As roupas que ele a emprestou, camisa preta larga mostrando a silhueta dos seios, a calça de pano. Aquela única mecha vermelha brotando da sua testa e os olhos negros, impiedosos. Mas reparando melhor, não estavam tão impiedosos assim. Pareciam mais confusos.
Luvia apertou o gatilho e disse "Bang!", mas a arma estava descarregada.
O jovem a encarou com estranheza e ela sorriu, colocando a pistola de volta na mesinha em que estava antes. Ela virou-se de costas pra ele e começou a dizer enquanto olhava pro chão, numa voz calma. Que lembrava Erin:

- Eu não conseguiria. Por mais que eu tente ser fria eu não ia conseguir matar você depois de ontem. Vi o sofrimento nos seus olhos, a maldade que veio desse sofrimento. Você é o assassino que eu queria conseguir ser. - Kasuya desviou o olhar, mais uma vez o papo de demônio sem sentimentos - Mas... Eu vejo que você ainda tem uma alma bondosa no fundo. Não pediu pra ser quem você é. Kasuya... Me poupou ontem, sendo que poderia ter me matado quando quisesse. Cuidou de mim, mesmo que obrigatoriamente. Eu te devo essa.

- Te mantive aqui pra descobrir o que você queria. Pode muito bem ser uma assassina da Black Rose. Só dei uma chance pra ver se você seria esperta e fugiria.

- Você confia em mim. Eu sei. - Ela riu e piscou pra ele, Kasuya a achou irritante - Posso ficar mais um tempo se você quiser. Afinal, temos um inimigo em comum.

- Eu luto minhas guerras sozinho. E você faça o que quiser.

Levantou-se do sofá e foi pro quarto apanhar um agasalho, a fome estava dilacerando seu estômago aquela altura. Precisava comprar mais alguma coisa. Saiu do apartamento sem olhar para trás, jogando o capuz do seu moletom cinza no rosto. Não queria ligar para o que a intrusa decidisse fazer, não podia se apegar a mais ninguém. E pra ele que sempre foi sozinho era fácil demais se iludir com alguém, criar expectativas impossíveis. Os solitários são durões por fora sempre, mas amam rápido demais. Kasuya sabia que perderia tudo que amasse. Era melhor ficar sozinho.

Chegou na mesma lanchonete de ontem, simples, clichê. Vitrines grandes, mesinhas ligadas na parede alinhadas e cercadas de bancos. Um balcão grande com mais banquinhos e painéis com as imagens do que havia no cardápio estampadas neles por inteiro.
Kasuya escolheu um lanche nem muito grande e nem muito pequeno, e refrigerante de limão. Matar pessoas dava uma quantia de dinheiro ótima, o suficiente pra jantar o que ele queria todo dia. Sentou-se numa das mesinhas, e começou a comer. Lembrou-se de Luvia, deveria levar algo pra ela. Pensamentos inúteis, a sua irritação aumentou quando ele notou que estava querendo que a garota ficasse e lhe fizesse companhia.
Ter alguém com quem conversar impediria ele de pensar demais, melhor que musica, o impediria de se render àquela vontade que estava sentindo de correr pra Anita, como um órfão carente correria pra abraçar uma mãe caridosa.
Quando já tinha terminado de comer, largou o dinheiro contado na mesa e enfiou as mãos nos bolsos do seu agasalho. O frio estava cortante, mas ele parou no meio da calçada por outro motivo. Sentiu a presença dela de novo, mais forte que nunca.

"Ela está aqui."

Os sussurros na sua mente se intensificavam junto com aquela paranóia. Começou a andar mais rápido, analisando tudo com o olhar. Carros passando, lanchonetes, restaurantes e hotéis luminosos ao redor. Jovens da sua idade mais ou menos conversando sem nenhuma preocupação. Ouviu até duas meninas assoviarem pra ele e alguns garotos rirem. Não olhou pra nenhum deles, seu mundo não era aquele. Nunca seria.
Sair pra passear e curtir a noite com amigos... Que ilusão aquilo era!
Depois de se afastar das partes movimentadas Kasuya notou que estava sendo seguido. As vozes repetiam a mesma coisa, o nervosismo aumentou a ponto de ele tentar despistar quem estava atrás dele, mas sem sucesso. A cabeça começou a doer, ele estava numa rua deserta.

- Não pode fugir de mim queridinho. - Era a voz de Anita.

Imediatamente ele olhou para trás. Uma mulher, pela silhueta só podia ser uma. Com um sobretudo pesado e um capuz. Impossível de ver o rosto bem, de tão agasalhada que estava. Kasuya dobrou um beco que estava do seu lado e esperou.
Assim que ela passou pelo beco, o albino sacou a pistola que levava consigo e puxou a mulher pra dentro, colocando-a de costas para a parede fria de tijolos vermelhos. Tapou-lhe a boca antes que ela pudesse gritar e colocou o cano da arma em seu queixo, lançando-lhe um olhar furioso. Mas para a sua desgraça, era uma senhora de meia idade que o encarou aterrorizada.
Totalmente desconsertado ele a soltou, pedindo desculpas enquanto apertava a cabeça com uma mão. A mulher o chamou de louco e fugiu correndo.

- Maltratando velhinhas Kasu-chan? - Mais uma vez a voz de Anita.

- Cale a boca! Suma da minha cabeça, eu não te dei permissão pra bagunçá-la!

- Eu estou bem aqui. Meu bumbum não ia caber dentro da sua cabecinha. - Não era a voz de Anita, aquele tom debochado lhe era familiar.

Kasuya sentiu um frio na espinha quando olhou na direção da voz e avistou uma garota morena de costas, apoiada na mesma parede que ele, mas do lado oposto. Olhando pra rua, enquanto ele estava de frente pro beco. Reconheceu aquela maldita imediatamente. Não havia outra pessoa no mundo tão parecida com Anita.

- A menos que você esteja apaixonado por mim também. E não aponte armas pra minha cara dessa vez ok? Vai cortar o clima. – O albino tinha mesmo pensado em apontar uma arma pra cara daquela vagabunda, mas lembrava-se que eles estavam em trégua.

- Clima... O que diabos você quer comigo?

- Que tal me dar um abraço pra matar as saudades primeiro? – A garota deu um risinho. A voz dela também parecia veneno, entrando pelas orelhas e contaminando o corpo todo.

- Vá direto ao ponto! – O tom de voz dele saiu irritado. A mera presença daquela morena dos malditos olhos verdes perto de si estava fazendo sua cabeça doer, risos ecoarem nas suas orelhas junto com a voz de Anita.

- Ok ok... Que falta de senso de humor. – Mais risos, então finalmente ela tomou uma postura mais séria, depois de tossir – Eu quero que você mate alguém, Senhor Assassino de Aluguel.

- Há... – Kasuya poderia rir daquilo se ela não tivesse continuado.

- Posso te pagar com o que você quiser. Pra ser sincera, se você fizer isso eu juro que tiro sua pureza no sentido sexual na mesma noite.

- Sem piadas. Fale de uma vez. – No fundo ele sabia que aquilo não era uma piada.

- Essa você vai adorar. – Ficou em silencio um pouco pra fazer suspense – Uma pessoa veio passar a virada do ano aqui na Espanha. E daqui a uns dias, eu sei exatamente a cidade e o local em que ela vai estar. Quero que você a acerte.

- De quem você está falando?

- A nossa mamãezinha querida. Aquela que anda assombrando você... Anita.

Era isso mesmo? Anita Sullivan estaria ali e aquela menina a queria morta? Kasuya se desencostou da parede na hora e a agarrou pelo braço, apertou-a contra a parede, mas não ousou olhar para o rosto dela. Sua cabeça baixa lhe dava uma visão do busto, um decote malvado e farto feito naquela blusa preta longa de zíper. A garota sorriu, ele pode sentir isso. Desviou o olhar para o seu próprio bíceps direito. Não podia olhar para aqueles olhos, sob hipótese alguma. Nunca.
Mas a desgraçada abaixou seu rosto na altura do dele apenas pra poder sussurrar em seu ouvido. Sussurros provocantes, como sempre eram.

- O que me diz? Não vai ter oportunidade melhor. – Silêncio – Olha só o seu estado, lindo. Por fora continua o mesmo picolé albino apetitoso que sempre foi, mas e por dentro? Não quer dormir pelo menos uma noite em paz? É só me dar uma mãozinha, eu juro que eu vou fazer bom uso dela por nós dois. Que tal?

- Quando e onde?

A morena apanhou um papelzinho do seu próprio bolso, naquelas saias grossas, colocando-o entre o cinto e a calça de Kasuya. Deu mais um sorriso e se aproximou, tocando o rosto dele com aqueles lábios macios. O rapaz a soltou na hora, ainda assim recusando-se a olhá-la no rosto. E não satisfeita, a bruxa enlaçou a cintura dele com um braço e deu-lhe uma mordida leve no lóbulo da orelha.

- Sabia que você não ia me decepcionar.

- Bruxa maldita...

Então se afastou entre risos manhosos, roçando a mão pelo abdômen dele quando o libertou daquele abraço. Alguns segundos e ela já tinha sumido nas ruas, como se nunca tivesse estado ali. Aquela era outro demônio, um pior que ele, talvez pior que Anita. Não. Não era pior que Anita ainda, mas ela tinha mudado bastante. Kasuya nem precisou ver o seu rosto para perceber. Lembrava-se daqueles olhos... Suas pernas amoleceram e ele caiu de joelhos na calçada. Escondeu a pistola no casaco e socou o chão. Ficou bufando por um tempo até conseguir levantar-se e caminhar de volta para o hotel. Sua sentença tinha sido assinada.

Entrou no apartamento ainda atordoado. Procurou com olhos por Luvia na sala, nada dela. No quarto, banheiro, nada. Parecia que a garota tinha ido embora mesmo. Isso arrancou uma risada longa dele, de frustração.

“Somos só eu e você de novo Anita. Venha colocar mais loucura na minha cabeça, acabe com o resto de sanidade que ainda habita minha mente!”

Começou a rir sem parar, como se estivesse possuído por alguma coisa. Sacou a pistola da sua blusa e a jogou na mesinha. Quando ele finalmente parou de rir, olhando para o teto com os olhos fora de orbita, decidiu ir tomar um banho. Era o melhor a se fazer. Sim, um banho deveria acalmá-lo. Ficou afundado na água quente por um bom tempo.

Depois caminhou para a cama. Mesmo que estivesse frio, ficou sem camisa. Não teve paciência pra procurar demais por uma. Jogou-se ali naquele colchão encardido e fechou os olhos. O sono não veio. Passou quase duas horas num estado de “quase-sono” sonhava acordado com o mesmo de sempre. Dessa vez ele se viu sozinho numa escuridão profunda, não havia ninguém. Nem mesmo Anita.
Aquilo ia se tornando cada vez mais desesperador, torturante... Até que ele sentiu algo perto de si. Abriu os olhos no mesmo momento, deparou-se com Luvia. Estava do seu lado na cama, inclinada sobre ele. Nem tinha a notado entrar no quarto, estava igual o dia anterior. Acabara de sair do banho, envolta apenas em uma toalha. Aquilo era parte do sonho?

- Espero que não se importe se eu ficar.

Seus olhos estavam cansados demais pra analisá-la. Mas aquele olhar que a garota lhe lançava... Era estranho. Tinha certo calor, algo que ele não conhecia muito bem. Desejo talvez.
Aquela rebeldia do seu olhar estava derretendo-se completamente em desejo.
Mulheres conseguiam serem diabos na vida dele quando queriam.
Aquilo era real. Os lábios quentes dela encostando-se lentamente nos seus, o peso do corpo dela se descarregando lentamente em cima do seu. O calor e as curvas daquele corpo. Era tudo real. O que ele iria fazer? Já esteve com mulheres antes, Tetsuo o forçou a isso. Por tradição, claro. Ele tinha que se tornar um homem em todos os sentidos não?
Mas dessa vez era diferente, ela não era uma prostituta de luxo ou coisa do gênero. Estava o beijando porque queria, mesmo que beijá-lo fosse o mesmo que beijar algo sem vida, ela continuava. E parecia gostar disso. Quando ele olhou melhor, Luvia já havia se livrado da toalha. Tinha mesmo um belo corpo.
Kasuya não soube como agir, mas não tinha motivos pra rejeitá-la. Pelo menos ele não ficaria sozinho por enquanto. Deixou seu corpo agir por si mesmo. Apesar de tudo era um homem, sentir a pele macia e quente de uma mulher como aquela sobre si o fazia lembrar-se do ditado que dizia “A carne é fraca.”
Mesmo que ele não soubesse retribuir um beijo, daria à garota o que ela queria. Não pôde ou quis resistir, deixou-a fazer tudo o que desejava.
As imagens se embaçaram, ele via Anita no lugar dela às vezes, sua cabeça girava em meio ao êxtase. Os sons que ela soltava emitiam a voz daquela feiticeira de olhos verdes, tudo se misturava e confundia ainda mais seus sentidos. Ficou em silencio até o fim.
Até a hora que ela finalmente deixou-se cair de cima dele, exausta. Deitada ao seu lado. E com um ultimo beijo na face, o deixando envolto em seus braços, a garota dormiu.
Ele próprio acabou dormindo. Sem saber se sentia algo por ela.
Só sabia que ele iria sentir-se “vendido” depois. Vendeu-se por companhia, o que chegava a ser ridículo demais pra alguém do porte de Kasuya.

Seu sono durou mais que o normal, talvez a sensação de ter alguém ao lado lhe abraçando causasse esse efeito. Tudo aquilo era apenas carência no fim. Kasuya abriu os olhos e sentiu-se sujo. Achou aquilo tão errado que não pôde ficar ali deitado, vestiu-se e foi para a janela. Checou o bolso, o papel que tinha recebido da dona dos olhos verdes de ontem ainda estava ali. Era sua melhor chance, matar ou morrer.
Anita estaria sem muita proteção, o local indicado era uma boate. E ele sabia que a filha querida daquela que assombrava seus sonhos não estaria mentindo. Apenas um disparo e isso teria fim. Ele precisava ir para aquela cidade o mais cedo possível.
Mas o que viria depois disso? Depois que Anita morresse, a grande idéia era ele mesmo morrer. Queria morrer.
Porém a noite anterior havia despertado uma dúvida mínima na sua cabeça. E se aquela garota que se ofereceu pra ele logo depois de ter tentado matá-lo conseguisse amar alguém como ele. Com um pouco de sorte ela não tinha feito aquilo apenas por carência.
Mas quem acredita em amores a primeira vista?
Kasuya nunca contou com a sorte. Essa palavra nunca existiu em seu vocabulário.

Apanhou suas coisas quando ainda era cedo. Armas, roupas, documentos falsos. Vestiu-se com aquela jaqueta amarela e preta, com jeans surrados e uma camiseta branca. Colocou os fones do mp3 nos ouvidos, mas não colocou musica alguma para tocar. Estava prestes a sair daquela espelunca quando ouviu a voz de Luvia atrás de si:

- Aonde tá indo?

- Honrar um contrato.

- E vai me deixar aqui assim? – Ele não se virou, mas a garota estava enrolada num lençol. Parada na porta do quarto, encostada nela.

- Não tenho compromisso algum com você.

- Homens... – A melancolia ficou obvia na voz dela – Nós nos entregamos completamente a vocês de todas as formas possíveis e mesmo assim os resultados nunca mudam.

- Talvez porque as mulheres de hoje achem que podem conquistar tudo apenas com o corpo.

Luvia riu. Um riso delicioso para as orelhas do albino, mas ele não queria ouvir. Não queria gostar daquele som, de a fazer sentir-se assim.

- Essa foi boa. Acho que você tá pegando o jeito. – A resposta de Kasuya foi o silêncio. Estava segurando a maçaneta. Não entendia porque não havia saído dali ainda – Eu posso ajudar você. Estou me sentindo sozinha... E eu sei que você é pior que eu. Que tal? Parceiros?

Tentador.
Ele chegou a olhar brevemente para ela. Estava terrivelmente bela com o sol da manhã batendo naquela sua pele clara. Seus olhos eram passivos, algo que fez o rapaz lembrar-se mais uma vez da sua irmã. Por que ele era o único que tinha que ficar sozinho?

“Se elas ficarem perto de você vão morrer. Vão te desprezar! Você é apenas uma sombra, não pode proteger ninguém e nem demonstrar amor. Garanto que essa outra vai te substituir um dia. O que você pensa que pode ser? Bom marido? Pai de família? Não me faça rir tanto.”

Vozes, afiadas e cruéis como sempre.
Mas não foi isso que fez com que ele saísse do quarto, batendo a porta. Kasuya sabia para onde iria e sabia que aquela garota não ia ficar viva se fosse com ele.
Ele estava indo diretamente para o inferno, tentar acabar com o próprio diabo. Era melhor que o fogo o consumisse sozinho. Não podia perder mais. Mesmo que Luvia tivesse sido só algo passageiro, que um dia iria viver normalmente quando aquela sua vingança acabasse. Ter filhos, um emprego, casar-se com o primeiro idiota que conseguisse seduzi-la...
Pra ele não tinha mais volta. Quando a vingança do jovem acabasse, a vida dele iria junto. Sem flores, sem finais felizes. Apenas um mergulho profundo na escuridão.

Alguns dias depois ele conseguiu chegar a seu destino, pensou na garota praticamente o tempo todo. Mas apenas por não ter mais no que pensar além dela e de seus sonhos com Anita. Havia conseguido uma Barrett M107, duas USP compactas e alguns acessórios. Pra ele estava ótimo, as ‘guerras’ pessoais da Black Rose costumavam ser discretas. Mas ele achava que já haviam o descoberto na cidade. Sentia que alguém estava o vigiando. Pelo menos isso era a certeza que ele precisava ter de que a sua seita estava mesmo naquele lugar. No dia em que ele conseguiu confirmar a presença de Anita Sullivan numa boate de lá, não quis esperar. Seu coração acelerava apenas por pensar na mulher, que o dia de matá-la finalmente chegou. Um tiro com aquela Barrett. Era só isso e tudo estava acabado, Anita não podia ser a prova de balas. Bastava puxar a porcaria do gatilho.

Lá estava ele, no terraço do prédio. Já havia matado um ou dois seguranças apenas pra chegar onde estava furtivamente. O rifle estava alojado numa maleta grande, que servia pra disfarçar um pouco. E as USP dentro daquele seu casaco amarelo com capuz.
Ouvia a música alta vinda de dentro daquele prédio, gostava de batidas eletrônicas pesadas como aquelas. Mas sentia-se inquieto.
Estava nervoso por algum motivo, talvez por saber que Anita estava realmente ali. Depois de um tempo longo de espera, ele conseguiu ver uma limusine chegando. Anita e Sadako, dos Kaori, saíram dela. Kasuya poderia ter atirado dali mesmo, mas precisava se concentrar, e preparar a arma. Seria imprudente demais atirar daquele angulo. Ele desceu para a boate, descobriu onde a líder da Black Rose estaria sentada e procurou um lugar. Achou um perfeito, parecia ter sido colocado ali propositalmente. Chegar nele foi fácil, e a segurança ali por perto era escassa. O lugar ficava no alto do telão, um pouco acima das luzes que piscavam freneticamente iluminando a pista de dança lá embaixo. A música alta iria abafar o som do disparo, evitando causar pânico nas pessoas. Aquilo parecia perfeito demais... Tão perfeito que parecia suspeito. Mas não havia outra escolha. Kasuya preparou a rifle para o disparo.
Cada segundo parecia um ano na mente dele, estava ansioso. Não conseguia manter a cabeça vazia, não conseguia ficar frio como sempre era. Depois que ele matasse Anita o que faria... Suicídio? Uma idéia vaga de voltar e reencontrar Luvia passou pelos seus pensamentos, algo que ele afastou rápido. Ilusões.

Tudo parou naquele momento. Quando ele finalmente a viu ali, aquele diabo de olhos verdes e cabelos negros. O vestido negro elegante, as mechas onduladas, as jóias. As marcas registradas, era ela. Anita Sullivan.
Então por que ele hesitou quando mirou e colocou o dedo no gatilho?
Estava mirando na cabeça dela, um tiro e tudo acabaria. Era o fim de jogo pra ela e pra ele.
Por um momento o coração do rapaz saltou pela boca, os olhos de Anita passaram por onde ele estava. Teria ela o visto? Mesmo que ela não tivesse fixado o olhar na direção de Kasuya, foi estranho. A mulher começou a balançar graciosamente o corpo, acompanhando a música. E olhou diretamente para onde ele estava.
O corpo de Kasuya estremeceu por inteiro, sentiu um frio no estomago terrível. Seus dedos trêmulos não conseguiam puxar o gatilho e seu braço ferido doeu inteiro. Ele chegou a morder o próprio lábio inferior pra ver se saia daquele transe em que tinha entrado.

“Ela não pode ser uma humana! Não pode!”

Conseguiu chacoalhar a cabeça, mas quando tornou a olhar Anita não estava mais lá. Golpeou a estrutura em que estava posicionado com força. E levou a mesma mão que usou pra isso aos seus cabelos prateados.
Ficou se questionando sobre os motivos daquela reação estranha... Não podia olhar praqueles olhos, nenhum segundo. Não podia perder essa oportunidade.
Depois de recuperar a firmeza de seu corpo, Kasuya desceu pela estrutura de ferro onde estava pra ter uma visão melhor. Demorou um tempo bom até conseguir. Viu Anita de novo, mas havia mais pessoas lá dentro. Um homem de uma das famílias da Black Rose (Kasuya lembrava-se vagamente de Louis), Kaori Sadako e uma garota muito familiar, morena de olhos amarelados. Não pensou muito, apenas calculou onde seria a cabeça de Anita e colocou o dedo no gatilho. Porém sua mente atingiu o ápice da loucura naquela hora, ele viu os olhos de Anita. Não tinha olhado para ela de novo, mas os imaginou. E nesse mesmo instante ele sentiu duas mãos macias, porém extremamente geladas tocarem suas costas, deslizarem pelo seu peito e pararem os movimentos o apertando em um abraço. Porém o que fez com que ele quase largasse o rifle foi a voz doce e familiar que chegou aos seus ouvidos. Era a voz de Erin.

- Você não é um assassino Kasu-chan. Você não gosta de fazer isso. Por que continua matando? Por mim? Você realmente me ama tanto assim?

Sentiu o peito apertar como se a aparição de sua irmã estivesse tentando esmagar o seu coração com aquelas mãos frias, ele pode vê-las no seu peito. Ele conseguiu ver o rosto de Erin atrás do seu pela lente da mira na Barrett.
Kasuya desejou largar aquilo e abraçá-la, mesmo que fosse um fantasma, quis abraçá-la. Porém sua mente sabia que aquilo não era real. Devia ser apenas mais um truque daquela bruxa, daquela maldita. A voz dele saiu com um tom de dor estrondoso:

- Você está morta!

“E em breve eu vou estar com você... Erin...”

A arma disparou. E a música parou subitamente.
Para o azar de Kasuya, acertou a taça de vinho que Anita segurava. E em questão de segundos Kaori Sadako já havia o enxergado, e veio na direção dele como uma felina dando o bote sobre uma presa. Pulou pela janela, deslizou pelas faixas que enfeitavam as paredes da pista de dança e caiu levemente entre a multidão que começou a correr para fora do local entre gritos. Agora era tarde, ele tentou disparar mais vezes. Tinha que matá-la agora.
O segundo tiro foi em vão, por pouco não acertou outra pessoa ali dentro. E o terceiro, idem. Ele não conseguia esquecer a imagem daqueles olhos cor de esmeralda por mais que tentasse. Antes do quarto disparo ele viu algo voando na sua direção, uma lâmina. Conseguiu colocar a Barrett na frente dela, mas caiu dali de cima por ter perdido o equilíbrio. Acertou alguns ferros na queda até conseguir achar um jeito de chegar ao chão que não fosse matá-lo. A pista de dança estava praticamente vazia quando ele pisou nela, porém havia uma única pessoa ali. Que o esperava com um olhar frio, cinza e sem vida. Era Kaori Sadako.

Kasuya tentou erguer a rifle para ela, mas quando percebeu a garota já estava embaixo da arma e tentou cortar-lhe a mão. O albino se afastou o mais rápido que pode, jogando a arma em cima da menina. Sadako conseguiu evitar o impacto com aquela sua blusa longa. Kasuya correu para o elevador que estava visível. Provavelmente travado nos andares inferiores, sentiu duas lâminas zumbirem às suas orelhas, mas seus movimentos foram velozes o suficiente pra que ele se jogasse pela porta de vidro do elevador, caindo por cima deste, que por sorte estava apenas um andar abaixo.
Desceu pela escotilha e abriu a porta à força, saindo em uma escadaria. Só ali ele pode sacar as pistolas, mas não parou de correr. Desceu mais dois andares até notar que a garotinha estava no local onde ele parou. Não havia chance se ele decidisse enfrentá-la desarmado. Sabia que os Kaori usavam veneno. Um corte mínimo e seria o fim.
A luz do longo corredor em que ele estava apagou-se.
O albino ergueu as pistolas para frente, buscando cobertura para as costas. A porta de vidro que levaria ao outro elevador daquele andar. Só conseguiu ouvir quando aquela menina veio correndo na direção dele, disparou, mas errou. Não sabia como tinha errado, mas o fez. O chute que ele levou no peito fez com que seu corpo se chocasse com o vidro atrás de si. Então Sadako começou a estocá-lo com suas lâminas que eram presas às mangas de sua blusa e aos seus braços por um tipo de bracelete. Kasuya conseguia esquivar-se penosamente, o vidro atrás dele se quebrou por inteiro devido aos golpes das lâminas.
Quando finalmente enxergou uma abertura nos movimentos da garota, atingiu-a com um soco na boca. Foi tão certeiro e poderoso que ela voou para trás, talvez tivesse a nocauteado igual fizera com Luvia no primeiro encontro deles. Mas no reflexo ela conseguiu atirar mais uma adaga que estava oculta e para esquivar-se Kasuya teve que se jogar pra trás. Chocando-se contra as paredes do elevador.
Impulsionou-se com os pés em uma delas pra atravessar a porta de vidro do andar de baixo, por pouco conseguiu ocultar suas armas por baixo do corpo. Sabia que havia pessoas naquela sala em que caiu, mas a dor da queda e dos choques não deixou que ele percebesse mais que isso. Só recobrou a consciência quando já estava estirado no chão.
E notou a aproximação de diversas pessoas pelos passos.

“Mantenha a calma. Quando um deles se aproximar faça o que você faz de melhor! A dor física não é nada, é apenas psicológica! Você sobreviveu a toda dor até aqui, só mais um pouco e toda sua dor vai acabar. A dor da sua alma, que sobrepõe qualquer dor física. Sinta o ódio, deixe o ódio fluir! Levante-se como se cada um deles fosse a própria Anita Sullivan. Massacre-os! Esmague-os como os vermes que são! Mostre a eles o monstro que você é!”

Kasuya sentiu um sorriso insano formar-se nos seus lábios e o conteve como pode. As vozes faziam-no sentir-se invencível. Aquele êxtase demoníaco era tudo que ele precisava para se movimentar numa velocidade assustadora e acertar o primeiro deles com o cotovelo. Tudo parecia estar em câmera lenta, e rodando.
Usou o homem que acertou de escudo, e com quatro tiros ritmados acertou em cheio a cabeça dos quatro outros homens que estavam ali. O cheiro de sangue, fogo, miolos... Aquilo preencheu o ar. Chutou o peito do seu ‘escudo’ descartável e ergueu-se.
Imponente e sinistro como um dos lordes do inferno em pessoa.

Então voltou sua atenção para a única pessoa de pé ali além dele, ergueu uma pistola para cada alma viva dentro daquele bar em que ele foi parar, já que a sua própria alma não contava como viva, uma pistola para o espanhol que ele derrubou e a outra para uma garota que tinha deixado sua bebida cair. Mas algo chamou atenção nela, Kasuya a conhecia. Aqueles olhos amarelos, o rosto de menina reclusa, aquele cabelo negro com algumas mechas encurvadas para as bochechas... Aquela sem dúvidas era Elisha Sayonomi.
A namoradinha de Victoria Sullivan.
O ser humano mais parecido com ele em questão de gênio existente. Kasuya se surpreendeu. O que ela estava fazendo ali no meio dos membros da Black Rose quando devia estar sendo considerada morta pelos mesmos?

- Você... Por que justamente você está aqui Sayo... – Foi a única coisa que ele conseguiu dizer, mas ouviu um disparo. Aquele espanholzinho havia se levantado.

Sentir a dor depois do disparo apenas irritou o albino. O maldito havia lhe atingido de raspão com o tiro, ainda estava desnorteado. Era o segundo tiro de raspão que levava num mês. Kasuya puxou o gatilho, mas ouviu apenas um ‘clic’, diferente do que ouviu da arma de Luvia. A sorte não estava do seu lado mesmo naquele dia...

- Não tem mais como usar os brinquedinhos, pivete?

Apesar da situação em que ele se encontrava o homem de cabelos castanhos meio compridos ainda arrumou audácia o suficiente pra debochar. Kasuya lembrou-se dele. Era Louis Archer, o recém declarado líder da família Archer. Não passava de um idiota...
Kasuya demonstrou isso quando arremessou a arma em cheio contra a testa dele, o derrubando tão fácil quanto faria com uma pistola carregada. Sentiu até uma leve vontade de rir quando observou aquele ser patético se contorcer de dor no chão com seus xingamentos. E por incrível que parecesse, aquela Elisha olhou para ele admirada. Mas tinha algo nessa morena que não era semelhante à Elisha que ele estava acostumado a encontrar. Elisha Sayonomi jamais tinha se vestido daquela forma tão elegante, ou usado maquiagem como aquela que a garota na sua frente usava. Mas o sarcasmo era o mesmo:

- Acredita em amor a primeira vista? Porque acho que me apaixonei...

Kasuya desviou o olhar e soltou um estalo decepcionado com a boca. Primeira vista? Então ela não era Elisha Sayonomi? O que diabos estaria acontecendo afinal... Ela definitivamente era diferente em várias coisas de Elisha, como no sotaque. O inglês dela não parecia ser de um americano ou canadense genuíno. Porém Kasuya reconhecia aquele rosto, era o da garota antissocial que havia conhecido quando estava brincando de estudante em Sleepy Hill no ano passado.

- Então você não é ela...

Sua voz saiu bem baixa. Quase no mesmo volume que os passos que ecoaram pelo bar. Kasuya olhou e enxergou algo que ele desejaria não ter visto de novo naquele dia. Kaori Sadako estava caminhando para ele irritada, com três adagas chinesas pequenas nos vãos dos dedos de cada mão. E pelo barulho nas escadas ele deduziu que ela não era a única chegando.
Não havia tempo. Jogou a outra USP contra a garotinha e correu para a saída, olhando uma ultima vez para aquela morena.
Sabia que Sadako ia esquivar-se sem dificuldades daquela pistola, então ele usou uma mesa de escudo por precaução. E ouviu os baques das adagas atingindo a madeira assim que virou a tal mesa. Um pouco de sorte talvez?

Kasuya correu. Atravessou janelas, portas, passou por mais agentes da Black Rose... Tudo que apareceu na sua frente. Então se viu num beco de um prédio pequeno, há quarteirões dali. Onde finalmente precisou parar para tomar fôlego. Aquilo tudo tinha sido em vão.
Ele havia falhado na sua tentativa de assassinar Anita Sullivan.
Conseguiu voltar ao seu apartamento totalmente desarmado e cansado. E chegou lá apenas pra encontrar algo que não queria. Ou pior, alguém.

Sentada em cima da pequena mesa de refeições estava aquela ruiva de cabelos curtos espetados nas pontas. Usava uma regata vermelha bem justa apesar do frio. E suas calças e botinas lembravam vestes militares, acentuadas por luvas negras em suas mãos. Tatuagem de um pequeno dragão embaixo do olho e duas serpentes nos braços nus, uma delas atacando um rato violentamente. Era exatamente isso que Kasuya era para aquela femme fatale. Um rato, indefeso, cansado e acuado.

- Ora ora... O menininho do Tetsuo aprontando de novo.

O inglês da mulher a denunciava. Mesmo que os Kaori fossem uma família chinesa mista com os japoneses, aquela mulher tinha sido criada na Rússia. E os russos sempre eram um problema dos grandes. Aquela era a cabeça dos Kaori. A própria Ayako.
Kasuya já tinha a visto uma vez e ficou vivo apenas por causa da piedade de Anita. Mas dessa vez Anita não estava mais ali pra salvá-lo.

- Você cresceu mesmo hein pirralho. A última vez que te vi pessoalmente era apenas um moleque cheio de ódio no coração. – Ela se levantou e ajustou suas luvas de couro, caminhando na direção dele. Kasuya tomou uma postura defensiva, olhando-a de uma forma séria – Mas isso não mudou tanto, mudou? Ainda vejo seu jeitinho medroso.

Silêncio. Kasuya não quis responder, apenas esperou ela vir. Ayako movimentou o braço como se fosse brincar, exibindo um sorriso firme pra ele. O albino desviou por sorte, pura sorte que ele não teve até ali. A mão dela atingiu a porta do cômodo com tanta força que fez um buraco superficial nela. Aquela força toda chegava a ser sobre-humana. Kasuya recuou, tentando tomar espaço ou procurar por uma arma. Mas Ayako aumentou o tom de voz ao perceber:

- Não sabe se virar sem armas? Você precisa mesmo de bons modos... Onde está a porcaria da honra que Tetsuo tanto pregava? – Dessa vez ela pareceu irritada, sua voz era tão furiosa que chegava a amedrontar o próprio Kasuya. Que não entendia mais o significado de medo. Ayako caminhou pra ele de um jeito ofensivo, com a raiva queimando em cada palavra que proferia – Eu vou te ensinar que não se deve apontar uma arma pra Anita! Vou te ensinar que crianças não devem desrespeitar suas famílias, seu rato imundo!

Não teve nem tempo de piscar. Quando o jovem notou o pé da ruiva já estava do lado de sua cabeça, conseguiu bloquear o chute, mas não foi rápido o suficiente pra acompanhá-la depois que o pé abaixou-se. Ayako colocou as mãos na nuca dele e puxou seus cabelos, moveu sua cabeça que foi de encontro com o joelho dela. O impacto jogou Kasuya pra trás, desnorteado. Ele sentiu o cheiro férrico do sangue, sentiu o sangue escorrer-lhe sem parar pelo nariz. Os lábios estavam cortados e o resto ele nem pode perceber, o punho daquela mulher chocou-se contra sua face de uma forma tão brutal que o derrubou. Seu cérebro inteiro entrou em curto. O albino atingiu o armário antes de cair, derrubando-o por cima de si. Mas Ayako não ia parar por ai. Havia uma diferença enorme entre ela e Sadako.
Tanto a força quanto agilidade dela eram assustadoras. Kasuya não conseguiu evitar um único soco. Talvez pelo seu estado exausto. As vozes já não o alcançavam mais, sua visão desapareceu nas trevas. Ele estava sozinho, apenas ele e a dor. Sentiu-se uma criança novamente, quando era espancado pelo pai nas sessões de “treinamento”. Sentiu outra joelhada no estomago antes de cair pela segunda vez quando tentou se erguer, depois veio um chute nos ombros o virou no chão. Depois notou o peso da ruiva, que já estava sentada no seu abdômen. Provavelmente o olhando daquele jeito impiedoso. Demonstrando todo o seu gênio violento. O vermelho que ela tanto gostava nas roupas e no cabelo era o do sangue, aquela mulher combinava com sangue melhor do que uma vampira.
Sua memória o levou para Luvia de novo. Mas Ayako já tinha feito isso antes, quando ele era mais novo. Porém dessa vez ela o atingiu uma, duas, três, quatro, sete, doze, dezesseis vezes na face. E só parou quando ele soltou um gemido baixo.

- Você se acha forte não é? Então encare os fatos. Você é fraco, não sabe nada sobre força. Anita me pediu pra te dar uma lição quando você voltasse. Não sei por que ela insiste em te manter vivo, mas tenho minhas ordens. Vou deixar você a mercê do acaso e ver se você tem capacidade pra se tornar forte de verdade.

Ayako sorriu e retirou uma pequena faca de um dos seus bolsos, cravando-a no braço do rapaz. Era óbvio, aquilo tinha veneno. Kasuya não pode fazer nada, viu a mulher levantar-se. Despediu-se dele com um chute na face e caminhou para a janela do apartamento. Então ele foi se levantando aos poucos novamente, e a encarou demonstrando um pouco da sua própria raiva. Sua visão foi voltando aos poucos.

- Me mate de uma vez! De uma forma direta! As maneiras que vocês cachorras da Black Rose usam pra fazer o serviço sujo de vocês me enoja.

- Se você acha que está acima de uma cachorra da Black Rose, então venha tentar provar homenzinho. Porque agora você não passa de um poodle engomadinho que só sabe ladrar!– Ela o chamou com a mão. O encarando com aqueles olhos cinza.

Kasuya correu pra ela e a atacou, o mais rápido que pode. E a acertou com um soco, no flanco. Ayako fez uma feição de quem tinha sentido aquele impacto, mas travou o braço do rapaz com o seu e o girou. Arremessando-o contra janela.
As últimas coisas que Kasuya sentiu foi o vidro cortando aquela sua jaqueta amarela e o choque contra escada metálica de incêndio, quando ele bateu as costas nela. E por fim, perdeu o equilíbrio girando por cima do ferro sem conseguir agarrar-se nas beiradas. Depois do vento contra seu corpo, sentiu o choque contra o chão. Dois andares abaixo de onde estava.
Sua visão escureceu novamente e ele não viu mais nada. Não sentiu mais nada.
Seria ótimo se tudo fosse acabar ali.

Aquele havia sido seu primeiro sonho bom em tanto tempo, sonhou com Erin. Ele estava no chão, daquela mesma forma que havia sido arremessado do seu quarto por Ayako. Mas ao invés de dor ele sentia o toque macio e gentil da mão de Erin no seu rosto. E aquela voz doce como o mais saboroso mel:

“Lute Kasu... Você não pode perder assim.”

- Eu não posso mais... Não tenho mais forças. Não tenho descanso. Não tenho mais nada.

- Eu estou aqui com você.

Não era mais Erin ali. Era aquela morena com uma madeixa vermelha no cabelo. Como ela tinha o encontrado? Kasuya recobrou os sentidos devagar, sentiu o gosto metálico do sangue na boca. Sua face estava inchada, seu corpo dolorido por inteiro. Sua carne pareceu desprender dos ossos quando ele tentou se mexer para tirar a mão da garota do seu rosto.

- Ei, ei! Calminho ai. Se continuar se forçando assim vai acabar com seqüelas sérias.

- Por que você está aqui? – A voz dele saiu arranhada. Até sua garganta doía.

- Eu te segui. Mesmo que seja durão tem coisas que você não vai conseguir fazer sozinho.

- Não preciso de você...

- Pra mim parece que a parte mais “durona” em você é a cabeça. Pare de agir igual um pirralho revoltado e me deixa retribuir um pouco por ter poupado minha vida aquele dia.

Kasuya ficou em silêncio e Luvia apanhou uma fatia de maçã que estava cortando para ele, empurrando-a contra a boca do rapaz, que relutou a principio, mas acabou comendo. Estavam em um tipo de galpão. Podiam-se ver os raios de sol entrando pelas janelas quebradas que ficavam lá no alto. Ficaram horas ali, Luvia fazendo comentários e ele em silêncio.
Até que ela perguntou sem esperar uma resposta:

- Por que as pessoas te assustam tanto assim a ponto de você não deixar ninguém se aproximar? – Mas ela surpreendeu-se quando Kasuya decidiu responder essa.

- Eu não quero mais perder ninguém por culpa dos meus próprios erros...

Ayako estava certa. Ele tinha sido fraco, não foi culpa de Anita Erin ter morrido. Mas dele, foi a escolha que ele fez o que matou Erin. Foi sua fraqueza que não permitiu que ele a protegesse.
Seus olhos avermelhados estavam distantes. Evitavam olhar para a garota que estava o alimentando. Kasuya fitava uma caixa de madeira grande, sua voz estava melhorando, mas a dor continuava irritante. Ficou imaginando onde Luvia tinha arrumado um colchão e o que ela pretendia estando perto dele, para evitar os pensamentos negativos sobre sua irmã e a sua própria falta de força. Já não estava mais em condições de ser uma ameaça a ela, estava sentindo-se patético. E por que ela estava tentando ajudar sendo que não ia ganhar nada com aquilo? O que Ayako quis dizer com “forte de verdade” naquela hora?

- Não estou em condições de proteger você ou servir de escudo... Então por que você me trouxe aqui? Por que está fazendo isso?

A garota suspirou, tentando sorrir. Então olhou para baixo e respondeu baixo:

- Eu tenho muito medo de ficar sozinha... Estar lutando contra essa seita por conta própria estava me deixando maluca. – Ergueu os olhos para ele timidamente, sem nenhum sinal daquela garota anarquista que ele conheceu – Quando eu descobri que você também estava contra eles foi ótimo. Eu quis contar com você apenas pra não ter que lutar mais sozinha. Você não se incomoda...? Com a solidão?

- Eu estive sozinho minha vida toda... Só tive curtos momentos com a minha irmã. – Não conseguiu compreender o motivo de estar falando isso para aquela garota.

- Acho que é por isso que eu sou tão fraca comparada a você. Apesar de tudo minha família sempre esteve comigo e eu tive uma vida normal. E agora que eu tive que seguir esse caminho estou com medo. De acabar morrendo sem conseguir me vingar, de confiar em alguém, de acabar nunca mais podendo gostar de alguém de novo. Por isso te conhecer me confortou tanto. Você passou por coisas piores... Eu sinto como se pudesse contar com você. Aprender a ser forte como você é.

Kasuya ficou em silêncio. Não sabia o que dizer para ela. Ele não passava de um monstro que não sabia amar, ou demonstrar. Não era alguém forte de verdade, mas alguém amargo. O que isso tinha de bom? Sabia que não podia protegê-la.
Era isso que Ayako queria dizer... A fraqueza dele vinha de dentro.

- Por que você amou tanto sua irmã?

-... – Mais silencio antes de uma resposta – Porque ela foi a única que conseguiu amar um monstro como eu... Foi a única que insistiu em mim quando ninguém mais queria tentar, quando eu era um moleque fracote indefeso. Nem mesmo minha mãe biológica ou meu pai adotivo, o clã Ishida ligaram para o que eu sentia ou quiseram me proteger por gostarem de mim. Ela quis saber o que eu enterrava por dentro. Só ela tentou me entender e ficou comigo depois que descobriu.

Dessa vez o silêncio veio de Luvia. Ficou ainda mais impressionada com o que ele tinha dito. Finalmente havia conseguido uma visão do que estava atrás daquela muralha de gelo. Kasuya não era tão diferente dela nisso. Ele tinha medo.

- Você... Acha que se eu ficar me metendo na sua vida e te perseguindo um dia você vai conseguir gostar de mim assim como gostou dela também?

Kasuya virou-se para ela com um olhar indiferente.
O que ele tinha a perder? Talvez devesse tentar mesmo gostar daquela inconveniente. Ele precisava de forças. Daquela força que Ayako mencionou. Precisava de alguém que conseguisse compreender os monstros e amá-los. No fundo ele sabia que não merecia aquilo e que sua luta ia ser mais difícil se acabasse apegado a alguém. Mas no fundo Erin fazia tanta falta... Alguém como Erin.
Tudo veio como um turbilhão. Ele sentiu seus olhos ficarem pesados e um nó na garganta. Quis olhar para o outro lado, mas Luvia o impediu. Segurou no seu queixo e virou o rosto do albino para si. Murmurando serenamente para ele:

- Não precisa ter medo. Eu vou cuidar de você, te proteger.

E nesse momento ele teve paz.
Não se importou com quem ela era e nem com o que ele iria sentir. Se um dia iriam matar os dois ou apenas um deles. Kasuya estava cansado, deixou-se guiar pelas mãos calorosas dela e repousou a cabeça em seu busto. Fechando os olhos profundamente enquanto Luvia acolhia sua cabeça com um abraço. Por um lado ela também poderia ensiná-lo o que ele precisava, monstros também podiam aprender a amar. A deixarem alguém amá-los. O problema sempre foram as pessoas que preferem condenar a frieza e o mau humor sem nem ao menos pensarem no motivo. Ninguém nesse pequeno mundo é sem coração.
Só existem aqueles que têm medo e escondem o que chamavam de “coração” na parte mais profunda do peito. Quem ligaria para pessoas assim afinal?

Sendo que Kasuya sabia bem que nesse mundo os humanos pregam um amor que eles mesmos nem ao menos tem consciência do valor verdadeiro que possui. Se você pode receber um ‘eu te amo’ de alguém que só esteve com você por dois dias e não sabe praticamente nada do seu interior para poder afirmar que gostou mesmo do que acha que conhece, pra que esperar anos pra ouvir a mesma coisa de alguém que nem consegue usar a palavra ‘amor’?

O jovem de cabelos prateados quis acreditar que existiria mais alguém disposto a amar um monstro naquele mundo.
Pois se tudo que vale a pena na vida se resume em ‘amor’, o amor vindo de um monstro sem coração seria o tipo mais precioso e belo de amor existente.

Ele sabia...
Ele sempre soube.
Essa sorte compensou pelo azar que teve o resto do dia.

“Love won’t save you when you’re alone anyway...”

2 comentários:

  1. Eu pessoalmente gostei desse. Adoro quando o Kasuya é o protagonista, sempre sai com mais impacto o capítulo. rs

    (Mesmo que seja mais pesado que o normal)

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  2. Muito perfeito as "historias" seriamente você devia pensar em fazer um livro Xd

    Você tem um otimo talento pra escrever, amei as duas historias "devorei" elas em 2 dias, e estou lendo de novo, espero pelo proximo capitulo ansiosamente

    ass: seu mais novo fan

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